A TRANSFERÊNCIA EM FREUD E LACAN
A presente matéria lança um olhar sobre as relações entre professores e alunos, num posicionamento não apenas horizontal, mas também vertical que se expressa pela hierarquia nessa relação, propondo pensar de que forma ela possa ser compreendida como uma transferência entre as partes e o quanto isso possa influenciar nos processos de aprendizagem que se estabelecem no ambiente escolar e deslizam pra vida desse sujeito transitando entre o simbólico, o imaginário e o real promovendo inclusive percepções e posicionamentos sobre suas dinâmicas de vida e ao longo dela.
Que lugar de mestre seria esse que a figura do professor ocupa de sujeito suposto saber (S-s-S), professor esse movido pelo desejo, numa função de tamanha relevância no qual gira o processo de aprendizagem e que em contrapartida possa vir a despertar no aluno um desejo de aprender, tão fundamental para que a aprendizagem ocorra, e que isso se estabeleça justamente na transferência entre as partes como um fenômeno originalmente espontâneo.
É relevante compreendermos e discutirmos sobre as relações, estabelecidas entre professores e alunos, inicialmente de forma espontânea segundo Freud. Elas nos darão notícias sobre como o processo de aprendizagem nas instituições escolares ocorra, entendendo que essa transferência fale de uma realidade ambígua entre o velho e o jovem, a distância e a proximidade, uma estranheza quanto a aceitarmos ordens sem que as contestássemos a princípio, independente de nossa idade, como se já não tivéssemos vivência suficiente para questionar essas ordens recebidas de nossos mestres.
Ao nos defrontarmos com esse cenário, deparamo-nos com as reminiscências de nossa vivência escolar pregressa dando-nos conta de que ela se manifesta no decurso de nossa vida, para o conhecimento humano e por conta dessa percepção, já que somos sujeitos identificados, constituídos e transformados por aspectos, traços, valores e atributos da cultura na qual estamos imersos, sublinhando as três categorias conceituais de Lacan: o simbólico, o imaginário e o real.
Esse registro do simbólico que é lugar fundamental da linguagem, fala da relação do sujeito com o grande Outro, que no sujeito envolve aspectos conscientes e inconscientes, o que significa que a maneira como esse inconsciente se manifesta se dá através da linguagem, e é por meio dela que os significantes (sistema de representações) nos dão notícias desse sujeito. O imaginário como registro psíquico corresponde ao eu do sujeito que busca no Outro (pessoas, amor, imagem, objeto) uma sensação de completude, dando-se conta de alguma forma que esse Outro não existe tal qual ele projeta ou deseja se vir projetado. Já o real é o impossível, aquilo que não se possa ser simbolizado, o indizível, aquilo que permanece impenetrável no sujeito. É um registro psíquico com o qual não se possa ser confundido no senso comum com a realidade.
O que nos foi ensinado e o quanto disso conseguimos aprender, passa a ser mais claramente sentido na aplicabilidade desses saberes em nossa vida adulta e profissional, e conseguimos perceber com razoável clareza a influência positiva que alguns mestres nos legaram motivando-nos, e porque não dizer influenciando-nos com determinadas tendências, posicionamentos e pontos de vista, enquanto que outros ao contrário, nos bloquearam em determinadas percepções que deslizam desde suas posturas até os conhecimentos dos quais eram detentores.
No processo de aprendizagem formal (instituições escolares), há algo de ambivalente no que se refere aos sentimentos do aprendente em relação ao ensinante, que remetem estes à relação primeira que tiveram com aqueles que lhes cuidaram, tais como pais, avós, babás, irmãos ou irmãs. Transferem para relacionamentos posteriores as imagos dessas relações. Atribuindo antipatias e simpatias às pessoas com as quais lidaram tal como uma herança emocional.
Dada a importância dessa relação de transferência precisamos também refletir sobre o lugar de mestre, de sujeito suposto saber que essa figura nomeada professor ocupa para seus alunos e que movido por esse desejo se ocupa de uma função na qual gira todo o processo de aprendizagem, e que possa despertar ou até mesmo interferir de forma negativa no desejo de aprender do aluno, desejo esse fundamental nesse processo.
O objetivo desse artigo é promover um questionamento acerca das razões as quais levem o aluno à aprendizagem ou à não aprendizagem ou dificuldade dela e o quanto a transferência estabelecida entre as partes possa facilitar ou comprometer esse processo tanto desse lugar ao qual o aluno ocupa para o professor , assim como o lugar ao qual o professor se coloque ou que ocupe para esse aluno, na condição (S-S-S) sujeito suposto saber e /ou mestre.
Entender os motivos que levem os alunos a estabelecerem relações com as imagos de suas relações anteriores com a dos professores, que possam vir a comprometer esse processo de aquisição de conhecimentos e de vivências ao qual nomeamos aprendizagem.
Rinaldi cita Freud ao dizer que originalmente a transferência foi descoberta por ele como um fenômeno que acontece de forma espontânea, e que de acordo com a experiência psicanalítica, assume o lugar de conceito, conceito esse que Jacques Lacan vai sublinhar como o próprio conceito da prática psicanalítica, formulando a noção de sujeito suposto saber. Lacan ainda afirma no Seminário XI, que o conceito de transferência é determinado pela função que essa práxis ocupa e que “nenhuma práxis mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real” (LACAN-p.55)
Essas duas afirmações permitem pensar a direção que dará à discussão da transferência, como mola mestra da análise, e à posição do psicanalista frente a esse instrumento, na condução de uma experiência analítica. A ênfase no real como o vetor que orienta esta práxis, nos chama a atenção para a importância que dará à noção de desejo do analista como função essencial em torno da qual gira o movimento da análise. Em suas palavras, “…o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a transferência.
O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu designo aqui como função essencial”(Ibidem, p.222)
Num contraponto entre a práxis psicanalítica e a práxis docente podemos considerar que assim como o desejo está como mola mestre da análise, o desejo também está para o processo de aprendizagem. A posição do mestre talvez possa ocupar um lugar tão relevante para o aprendente, assim como o lugar que o psicanalista ocupa para seu analisando. Entretanto, enquanto a análise dá ênfase ao real como o vetor que orienta essa práxis, a práxis docente em contrapartida, dá ênfase ao simbólico que é lugar fundamental da linguagem e ao imaginário que fala da relação do sujeito com o grande Outro, que neste caso é o professor.
Considerando entretanto que o desejo seja o pivô, a mola mestre que movimente essas duas práxis, podemos dizer que o desejo seja alimentado, nutrido, pela transferência em ambos. Se o que há por trás do discurso do paciente seja a demanda, também o possa ser para o aluno. Quando falamos desejo na práxis docente podemos pensar num movimento horizontal que desliza entre o docente e o discente. E não seria esse o ponto comum desse duplo machado? Um desejo, uma demanda, uma transferência que transita entre o analista e o analisando, entre o mestre e o aluno, e que em ambas as práxis ocupam um lugar de função essencial.
Autora:
Andréa Pinheiro Bonfante- Psicanalista e Psicopedagoga- Mestre e Doutoranda em Psicanálise, Docente do Instituto IBRAPCHS- RJ, Diretora e sócia do Espaço Vida Plena- Valença-RJ, Autora do livro "A Psicanálise e a Clínica do Autismo Infantil"
O desejo do aprendente também se entrecruza com o desejo do ensinante. Qual significado do saber e ensinar para esse sujeito e o Outro? Nosso corpo, organismo, mente estão convivendo juntos na linha do tempo horizontal e vertical. Quem são esses sujeitos no seu contexto pessoal, familiar, no mundo do trabalho e educacional? Olhar para esse ciclo e sistema é fundamental para o desenvolvimento humano. Quais são seus legados, mitos, segredos... ?
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