Psicanalista Mestre e Doutoranda em Psicanálise

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O QUE A PSICANÁLISE TEM A DIZER SOBRE OS LAÇOS SOCIAIS E O DESAMPARO NA ATUALIDADE?




O QUE A PSICANÁLISE TEM A DIZER SOBRE OS LAÇOS SOCIAIS E O DESAMPARO NA ATUALIDADE?
por Andréa Pinheiro Bonfante- Professora Mestre e Doutoranda em Psicanálise
 -Psicanalista e Psicopedagoga-



    A palavra DESAMPARO em sua etimologia significa abandono; condição de quem está abandonado, sem auxílio material ou moral. Estado daquilo que caiu no esquecimento, do que está sem proteção.
"O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos." (Sartre)


    
Segundo a teoria lacaniana, o DESAMPARO é estruturante, sendo "uma condição estrutural em face da qual o indivíduo deve se situar". Assim o desamparo em sua relação com o eu e a angústia, lança o sujeito em busca do objeto perdido, objeto este, causa de desejo.




Já a leitura dos textos freudianos sugere que o laço social, criação de Eros, é uma dentre as várias soluções que o ser humano utiliza frente ao desamparo. Tal solução se mostra uma ilusão, no sentido freudiano do termo: uma crença motivada pela realização de um desejo, cuja força origina-se em um dos mais prementes desejos da humanidade: a necessidade de proteção através do amor.


O poema de Bráulio Bessa- "Recomece", nos dá de alguma forma, a dimensão do desamparo visto sob um olhar contemporâneo:

Recomece | Bráulio Bessa


Quando a vida bater forte e sua alma sangrar, quando esse mundo pesado

lhe ferir, lhe esmagar...

É hora do recomeço.

Recomece a LUTAR.


Quando tudo for escuro

e nada iluminar,

quando tudo for incerto

e você só duvidar...

É hora do recomeço.

Recomece a ACREDITAR.


Quando a estrada for longa e seu corpo fraquejar,

quando não houver caminho

nem um lugar pra chegar...

É hora do recomeço.

Recomece a CAMINHAR.


Quando o mal for evidente

e o amor se ocultar,

quando o peito for vazio,

quando o abraço faltar...

É hora do recomeço.

Recomece a AMAR.


Quando você cair e ninguém lhe aparar,

quando a força do que é ruim

conseguir lhe derrubar... É hora do recomeço.

Recomece a LEVANTAR.

Quando a falta de esperança

decidir lhe açoitar, se tudo que for real for difícil suportar...

É hora do recomeço.

Recomece a SONHAR.


Enfim,

É preciso de um final pra poder recomeçar,

como é preciso cair pra poder se levantar.

Nem sempre engatar a ré

significa voltar.

Remarque aquele encontro,

reconquiste um amor,

reúna quem lhe quer bem,

reconforte um sofredor,

reanime quem tá triste

e reaprenda na dor.


Recomece, se refaça,

relembre o que foi bom,

reconstrua cada sonho,

redescubra algum dom,

reaprenda quando errar,

rebole quando dançar,

e se um dia, lá na frente, a vida der uma ré,

recupere sua fé e RECOMECE novamente.


-Bráulio Bessa

Assim como sabiamente Sartre, Lacan e Freud trouxeram reflexões e observações importantes sobre o desamparo e laço social, vale colocar no nosso radar um olhar atualizado sobre as mesmas questões que desde sempre atravessaram o sujeito, numa nova cartografia- algo que é desde sempre sim, mas que se reedita, que se inscreve nas cenas de todos nós sujeitos imersos no contemporâneo, e por isso trazer um poeta da nossa atualidade, que dialoga às claras, de forma simples e direta com o público, falando disso que é sensação de abandono, de perda, de incompletude, de não valia, de impossibilidades, de furo, de angústia, de sofrimento, de DESAMPARO.  De fato é disso que se trata, desde que nascemos somos tomados por essa sensação de vazio e abandono, e o choro do bebê, não como demanda de leite/fome, se repete na tentativa vã de se reencontrar com esse momento de prazer primeiro. Grande ilusão!

Na poesia de Bráulio Bessa, o desamparo que trazemos aqui para reflexão é nomeado com algumas palavras marcantes como:
SANGRAR, ESMAGAR, ESCURO, INCERTO, FRAQUEJAR, VAZIO, FALATAR, CAIR, DERRUBAR, AÇOITAR, significantes que nos trazem notícias de nossa fragilidade, incompletude, ou sejam lá quais forem os adjetivos e substantivos que possamos recorrer para tentar simbolizar isso que nos atravessa, nessa relação consigo mesmo e com os Outros.

Nas palavras LUTAR, CAMINHAR, ACREDITAR, AMAR, LEVANTAR, SONHAR ou em outras como RECONQUISTE, REÚNA, REANIME, RECONFORTE, REDESCUBRA, REAPRENDA, REMARQUE, significantes estes que trazem o prefixo RE temos a possibilidade e proposta de algo novo, que pode ser revisto, reeditado, e nada melhor para ilustrar isso trazendo a grande máxima de Guimarães Rosa trazido por Mário Sérgio Cortella (filósofo contemporâneo) ao dizer que não nascemos prontos e vamos nos gastando, mas nascemos não prontos e vamos nos fazendo, no seu livro "Provocações Filosóficas"

E O QUE A PSICANÁLISE TEM A DIZER? POR QUE A PSICANÁLISE?

Joel Birman- Psicanalista da atualidade, em seu livro Mal-estar na Atualidade, e vale dizer, inspirado na obra de Freud “Mal-Estar na Civilização” nos idos de 1920, ele o autor contemporâneo, nos convida a refletir que não possamos pensar mal-estar sem ressaltar o fato de que o que se inscreve aqui é da ordem da subjetividade, que o mal-estar é matéria prima sempre recorrente para a produção de sofrimento nas individualidades. 

Devemos pensar com urgência nos novos desafios que surgem e que se impõem ao sujeito dentro dessa nova cartografia, a perda do timing, o discurso do autogerenciamento trazido por Byung-chul Han em Sociedade do Cansaço ao nos colocar frente a perda do pai, do Estado, e sem um amparo que antecede, que nos aponte um caminho, as pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados - tornando-as vigilantes e carrascas de suas ações. Em uma época em que poderíamos trabalhar menos e ganhar mais, a ideologia da positividade opera uma inversão perversa: nos submetemos a trabalhar mais e a receber menos. Essa onda do "eu consigo" e do "yes, we can" tem gerado um aumento significativo de doenças como depressão, transtornos de personalidade, síndromes como hiperatividade e "burnout".

A proposta da Psicanálise não chega como um discurso que antecede, algo cristalizado ou alienante, uma receita de bolo, muito pelo contrário, convida a pensar, se implicar na cena, se fazer ator principal  do espetáculo da vida e não um mero coadjuvante ou um jogador no banco de reservas ou um investidor medíocre de seus desejos. É sobre se a ver com a castração, lidar com frustrações, fazer escolhas e decidir qual fatura você vai pagar porque ela SEMPRE chega.

FÁCIL? Não me atreveria a fazer tal afirmativa, mas digamos que aquilo que Freud levou para uma de suas pacientes no início do século XX – O caso Dora- ao perguntar “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?” seja o motor, o incômodo, o tropeçar que machuca, mas que nos arremessa para frente, um despertar pra se movimentar. E trazendo a grande máxima de Freud: “Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda.”


E O PAPEL DO PSICANALISTA?

Acolher - Ouvir - Pontuar - Implicar - Incomodar - Instigar - Fazer pensar

TALVEZ COLABORAR NO TRABALHO DE REVELAR OS NEGATIVOS DE FOTOS, ARQUIVADAS NO INCONSCIENTE, CONVIDAR O SUJEITO A  ABRIR SUA CAIXINHA DE PANDORA, OU OS SEGREDOS DE POLICHINELO, OU SEJA, AQUELE QUE TODO MUNDO SABE  E PODE ENXERGAR , MAS QUE É EVITADO, JUSTAMENTE POR SER DESAGRADÁVEL, MAS EIS AQUI UM DOS INFORTÚNIOS DO PSICANALISTA- MANEJAR TODA ESSA SITUAÇÃO VALENDO-SE DO PROCESSO TRANSFERENCIAL QUE O ANALISANDO ESTEBELECE COM ELE.


Psicanalista Professora Mestre e Doutoranda em Psicanálise Andréa Pinheiro Bonfante


Referências:

*BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

*HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

*CORTELLA, Mário Sérgio- Não nascemos prontos! Provocações filosóficas / Mário Sérgio Cortella. 19 ed. - Petrópolis, Rj: Vozes, 2015.

*BESSA, Bráulio-Poesia que transforma- São Paulo-SP.-Editora Sextante- 2018

*FREUD, Sigmund. (1905[1901]). Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. VII. 

*LACAN, Jacques. (1959-1960). O Seminário, livro 10: A angústia- Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 






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