quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A PERVERSÃO NO FEMININO

 

A PERVERSÃO NO FEMININO



    Inicio meus estudos e minhas abordagens a respeito do tema, frente à curiosidade a qual ele me suscita e também ao grande engodo do qual todos nós podemos ser vítimas se o interpretarmos a partir do senso comum. Não apenas no significante “perversão” mas também na forma como esse se apresenta no feminino, seus traços e suas especificidades.


    O texto “A perversão no Feminino” da autora Edilene Freire de Queiroz faz uma abordagem bastante esclarecedora e interessante, partindo do princípio de que o masculino e o feminino na perversão  tomam o corpo de forma bem distinta e associa esses traços como uma histeria de conversão com fenômenos psicossomáticos, destacando fundamentalmente a Verleugnung*, que se trata de um mecanismo básico de perversão do corpo, fazendo-nos pensar a respeito da posição feminina nesse aspecto.

*(O conceito de Verleugnung foi proposto por Freud no contexto do complexo de castração para designar o mecanismo psíquico de defesa por meio do qual o indivíduo renega a realidade da castração, isto é, renega a realidade da ausência do pênis na mulher)

    Queiroz nos convoca a pensar que o ato em si de “Psicanalisar” tem como pano de fundo a subjetividade de seu tempo. Sem desconsiderar os fundamentos básicos da psicanálise propostos inicialmente por Freud e posteriormente a partir da releitura de Lacan, devemos nos esforçar a entender que o sujeito contemporâneo atua nos dando mostras de novas formas de sintoma.   

    Há uma temporalidade na questão abordada que não pode nos passar despercebida por conta de sua grande relevância e que também por conta disto precisamos entender a necessidade de uma nova escuta clínica, pois  percebemos o quanto os traços de perversão estão  incrustrados no  “Outro social”. O que movimenta o sujeito de hoje a alcançar seu gozo, reforça ainda mais uma posição perversa; ele é incitado, estimulado e até mesmo de certa forma autorizado por esse “Outro social” a alcançar seu gozo de forma bastante consistente e por vezes até mesmo agressiva.

     E como seria abordada a questão da perversão no feminino? Se tomarmos como modelo a perversão sexual, a mulher se implica na perversão em relação ao masculino, Freud  se aproxima dessa questão pela primeira vez na ideia de sedução das histéricas que posteriormente descobre tratar-se de fantasias sendo a Neurose o avesso da Perversão. As pacientes histéricas apresentam uma "suposta" repulsa à Perversão como podemos observar claramente no filme “Um Método Perigoso”, brilhantemente dirigido por David Cronenberg que revela um episódio pouco conhecido mas muito marcante na vida dos dois mais importantes psicanalistas de todos os tempos.

    O jovem psicanalista Carl Gustav Jung começa um tratamento inovador com a histérica Sabina Spielrein (Keira Knigthley), sob influência de seu mestre e futuro colega, Sigmund Freud. Disposto a penetrar mais a fundo nos mistérios da mente humana, Jung verá algumas de suas ideias se chocarem com as teorias de Freud ao mesmo tempo em que se entrega a um romance alucinante e perigoso com a bela Sabina. Ao conhecer Sabina no início do tratamento, a jovem experimentava uma sensação de repúdio, uma mau estar, ao se recordar das surras que ela dizia receber do pai e se envergonhava ao confessar ao seu psicanalista que o que mais a assustava era reconhecer que ela gostava dessa experiência, chegando a verbalizar que ela até mesmo "gozava" com isso, e era extremamente difícil admitir repugnante ideia. No romance que manteve com seu analista Jung, manteve  como única forma de gozo ser maltratada por seu amante, ser “batida”, tal qual seu pai fazia com ela. Tal comportamento de seu analista não apenas compromete o tratamento de Sabina como põe fim à análise.

    Freud observa que qualquer estado que ponha em suspensão a ação do recalque promove a reinstalação das perversões, dando condições à satisfação da libido por meio de objetos, pondo em ação um mecanismo arcaico próprio da perversão, “A Verleungung”*

    Há duas possíveis saídas para as pulsões:

    Não é por acaso que a primeira figura acima em vermelho, se reporta ao significante “saída” no plural, devido à multiplicidade de possibilidades que essas saídas podem se apresentar, justamente por serem saídas  neuróticas. Em contrapartida, na segunda figura em amarelo, o mesmo significante apresenta-se no singular dando mostras do empobrecimento de uma saída perversa.

 Tão sabiamente como curiosamente, Jacques Lacan faz uma colocação muitíssimo pertinente sobre essa posição, dizendo que o fato de a mulher ser não toda submetida à castração torna-a um par ideal para o perverso pois, como este, ela também almeja um gozo além do fálico. 

    Esse estado de “cumplicidade objetal” que é reservado à mulher confunde a questão: ela se oferece como objeto-causa da perversão, mas não se perverte? Frente a esse questionamento, F. Perrier e W. Granoff veem nos esclarecer que o fato de não ser a mulher fetichista não a impede de perverter sua libido de um modo narcísico. “A mulher torna-se para ela mesma seu próprio fetiche à medida em que oferece seu corpo ao gozo...” (Dor, 1991, p. 186).

    Visto dessa forma, e se dermos significado ao significante perversão como algo que se desvia do caminho ou do destino, abrimos a possibilidade de manifestação de perversão no feminino, não restringindo-se ao sentido de desvio sexual, mas no de perverter a libido. Podemos exemplificar a questão com o caso de Monica Riley, uma jovem norte-americana que queria engordar para agradar o namorado chegando a ser até mesmo alimentada por um funil, tamanha a quantidade de alimentos que a jovem ingeria diariamente. Fazendo de seu corpo objeto de prazer para seu amado, Monica alcançou 445 kl e dizia que essa era uma fantasia sexual dos dois, onde ela própria oferecia seu corpo ao gozo.

(https://metropolitanafm.com.br/novidades/entretenimento/veja-como-esta-a-garota-que-quer-engordar-ate-nao-se-mexer-mais)

    Podemos finalizar argumentando que, por tratar-se de uma relação não fundada sob o registro da lei, ela se torna menos protegida e por isso mais vulnerável à instalação de pactos perversos, e nessa investigação nos aproximamos cada vez mais dos processos primários como a ação da Verleugnung sobre os processos psíquicos que dizem respeito ao registro de sensações e percepções que pertencem ao segundo sistema, ou seja, empobrecido. No lugar da falta erige-se então um monumento de falo. O objeto fetiche sempre vai apontar para o que ele representa, a falta que busca velar.


Escrito por Me. Andréa Pinheiro Bonfante. Psicanalista. mestre e Doutoranda em psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida-RJ. **direitos autorais.


Referências:

* ASSOUN, Paul-Laurent. Freud e a mulher. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

* FREUD, S. (1925). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: E.S.B. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1986. v. 14.

* DOR, Joël. Estrutura e perversões. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

*FREUD, S. (1919) Uma criança é espancada – Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. (1919) Rio de Janeiro: Imago, 1986. v. 16.

 

* GRANOFF, W. e PERRIER, F. Le désir et le féminin. Paris: Aubier, 1979

 

    







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