sábado, 28 de maio de 2016

ROTULAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO ABUSIVA DE NOSSAS CRIANÇAS



 “O disciplinamento médico na sociedade higienista passa pela fabricação de crianças, futuros homens rijos que, desde a mais tenra idade, devem ser acompanhados por médicos para que um dia estejam prontos para oferecer docilmente suas vidas ao país”*.

Há na sociedade contemporânea uma necessidade desastrosa em definir e rotular o que não se pode nem ser definido nem tampouco rotulado; a subjetividade de nossas crianças. Numa sociedade imediatista onde nada pode ser deixado para depois, não se pode perder tempo observando, esperando, permitindo ou ao menos deixando ser; de jeito algum, há de ser definido agora, não esperado, não observado, não se permitindo e muito menos se deixando ser.
Curioso observar que o que mais ouvimos da sociedade de uma forma geral é o quanto se preocupam com o futuro de nossa geração. Será mesmo? O que desejamos de fato para nossas crianças? Será que estamos comprometidos nessa missão de orientá-las ou apenas fingindo que nos importamos? Será que já paramos para ouvir o que de fato eles desejam ou os colocamos numa posição assujeitada aos nossos valores morais e financeiros? Fica aqui o questionamento.
 Esse modelo nos remete à posição da criança da Época Medieval onde era vista como um adulto miniatura, sem ser ouvida, sendo desrespeitada na sua condição de sujeito, como sabiamente diz a psicóloga, psicanalista, mestre em pesquisa e clínica em psicanálise Terezinha Costa. Nessa época ela era vista como um pequeno adulto, sem características que o diferenciassem, e desconsiderada como alguém merecedor de cuidados especiais, relacionando-se muito mais com a comunidade do que com os próprios pais. E não é disso que se trata? Num discurso arraigado de prepará-los para o sucesso, acabamos por formar robores “zumbificados”, onde aquele que questiona, reclama, não aceita ou pensa fora do senso comum logo é rotulado de hiperativo, com transtornos, mal educado,  e tantas outras definições que possam vir a ser convenientes. E nesse caso, o que fazer? Que providência tomar? Medicar é lógico. Só que não. Não é disso que se trata, como diz nosso sábio Psicanalista Jacques Lacan.
“Hoje já podemos falar em aprendizagem sem necessariamente pensar num modelo único e puramente de transmissão de saber. Existem diversos modelos e uma vasta forma de trabalhar a educação, claro que umas que possibilitam mais autonomia e outras que ainda prendem o sujeito numa alienação, que o impede de ver o mundo com seus próprios olhos”. (JACQUES LACAN)¹
Há várias vertentes sobre essa questão, e o que também não podemos deixar de abordar é o quanto estamos comprometendo toda uma geração, impedindo-as de sonharem, de idealizarem, de se constituírem enquanto sujeitos. A situação é tão grave que inspirou a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a fazer uma declaração bombástica: “A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro”, disse ela em entrevista ao Portal Unicamp. “Quem está sendo medicado são as crianças questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de mil  anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível”, diz ela².
Charles José da Silva, Psicólogo Clínico, Psicanalista, Pós graduando em Teoria e Clínica Psicanalítica, diz em seu artigo Medicalização do Sofrimento e a Dor Existencial Humana “[...] medicalizaram-se as crianças, por apresentarem rebeldias que, até bem pouco tempo tratávamos como ‘coisas de crianças’ e que hoje demos o status de “doença”. Estamos tornando nossas crianças e suas infâncias doentes”³.
Posso comprovar o que se diz acima todos os dias em minha clínica, onde atendendo crianças com demandas das mais diversas, sendo de aprendizagem ou emocionais, tanto na vertente Psicopedagógica ou Psicanalítica ,defronto-me com familiares contaminados com o olhar do outro (escola, educadores, amigos, parentes, profissionais diversos) numa busca inalcançável de perfeição de conduta dessas crianças que desejam ser ouvidas e que na grande maioria das vezes os problemas que apresentam são da ordem do emocional. É preciso investigar a causa e não apenas voltar os olhares para os sintomas, afinal de contas é essa a proposta da prática Psicopedagógica.
* Artigo: Da higiene mental à higiene química: contribuições para um comportamento entre a criança tomada como objeto pelo higienismo e como sujeito de sua verdade pela psicanálise, 1989, página 179.
Escrito por: Andréa Pinheiro Bonfante
Psicopedagoga Clínica e Institucional, Psicanalista de crianças, jovens e adultos, Professora de Letras (Português/ Inglês e Literaturas); Palestrante de Questões Educacionais e Comportamentais aplicadas ao contexto escolar e Relacionamentos Familiares, Sócia proprietária da Clínica Vida Plena Consultórios.
Formação: Graduada em Letras (Português/ Inglês e Literaturas) pela Universidade de Nova Iguaçu-RJ; Pós- graduada em Psicopedagogia pela Universidade Estácio de Sá; Tradutora e Intérprete da Língua Inglesa com curso de especialização em estilística, Pós graduanda em teoria Psicanalítica na Universidade Veiga de Almeida.

Referências:
COSTA, Terezinha. Psicanálise com crianças / Terezinha Costa. – Rio de Janeiro: Zahar, 2007


Nenhum comentário:

Postar um comentário