Psicanalista Mestre e Doutoranda em Psicanálise

segunda-feira, 28 de julho de 2025

O MACHISMO DESDE SEMPRE - QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DESTE DISCURSO SOBRE O FEMININO?

  O MACHISMO DESDE SEMPRE - QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DESTE DISCURSO SOBRE O FEMININO?



Olá, caro leitor e leitora! Que bom ter você por aqui! Frente a tela do computador, vejo o cursor piscando e me ponho a pensar o que trarei para vocês como proposta de reflexão, já que o tema é tão amplo e complexo. O que dizer sobre o machismo que já não tenha sido dito antes?

Sim, temos falado muito sobre isto nos últimos tempos, mas a sensação que tenho é que estamos “enxugando gelo”, ou rodando em círculos, sem chegarmos a lugar nenhum. Talvez você pense que eu esteja sendo pessimista, já que de alguma forma, ao menos hoje, consigamos expor em voz alta o nosso mal-estar diante da ditadura do machismo. Mas será que de fato estamos mesmo progredindo quando o assunto é a posição da mulher no laço social frente ao império machista?



Vamos lá. Antes de tudo, vamos entender o que significa machismo na etimologia da palavra? Vamos ao dicionário: substantivo 1. Comportamento que rejeita a igualdade de condições sociais e direitos entre homens e mulheres; 2. Qualidade, ação ou modos de macho ('ser humano do sexo masculino', 'valentão'); macheza 3. Informal, exagerado senso de orgulho masculino; virilidade agressiva; macheza. 

Isso posto, vamos iniciar nossas reflexões a partir da primeira e a terceira definição que o dicionário nos apresenta e que me chamaram mais a atenção: 1-“comportamento que rejeita a igualdade de condições sociais e direitos entre homens e mulheres”. 3-“ exagerado senso de orgulho masculino; virilidade agressiva; macheza”

A primeira definição fala sobre uma rejeição à igualdade de condição social e de direitos entre homens e mulheres. E quais seriam as razões pelas quais muitos homens rejeitem essa igualdade? E não estamos falando de igualdade física, fisiológica ou biológica, porque sim, somos diferentes, e que bom por isso. Estamos trazendo à pauta uma resistência a reconhecer os direitos iguais numa condição social que deveria enxergar a mulher como cidadã, e muito mais do que isso, como um sujeito em pé de igualdades que vão desde a não sermos desrespeitadas no trânsito até igualdade de salários e reconhecimento profissional, dentre tantas outras questões sociais que não respeitadas, colocam as mulheres diante de uma grande vulnerabilidade social e principalmente psicológica.

A terceira definição citada acima traz à pauta o exagerado senso de orgulho masculino; virilidade agressiva; macheza. Esse orgulho que junto à ideia de virilidade e macheza, traz como consequência um posicionamento agressivo diante das mulheres, onde se é permitido falar em voz alta, arregalar os olhos numa atitude ameaçadora, dar socos na mesa, nas paredes, usar adjetivos pejorativos e ofensivos, e muito mais. Temos tido notícias dessas relações abusivas e violentas diariamente nas mídias, na família, na vizinhança do nosso bairro, com a amiga de uma amiga, e em inúmeros contextos e situações que atingem todas as classes sociais.



 A violência como sintoma de um posicionamento machista, não é restrito às classes sociais menos privilegiadas, ela é de toda a ordem. A diferença talvez, consista naquilo que é velado, quando estamos falando de uma classe social mais abastada, digamos assim, e escancarada quando a cena está ao redor da pobreza.

 Mas vamos ao título que trago a vocês ao dizer que o machismo é desde sempre. O machismo é estrutural, está diretamente relacionado à história do Homem, e escrevo aqui com “H” maiúsculo para me referir à espécie humana. Desde os primórdios, a história traz o homem como o descobridor dos sete mares, o senhor das conquistas e das guerras, dos impérios, da força. Sim, não é problema algum reconhecermos que eles sempre estiveram lá, realizando conquistas frente os campos de batalha, e temos de pensar que seria extremamente perigoso para as mulheres estarem entre esses homens compartilhando conquistas, já que o corpo da mulher é suscetível ao abuso e à violência sexual. 




A história deixa clara as inúmeras violências que as mulheres sofreram durantes as guerras e conquistas de territórios. Os números falam por si só. Os homens sempre colocaram as mulheres nessa condição de objeto nesses cenários dos quais acabei de citar. Nesses espaços, o machismo na sua mais ampla definição, sempre colocou a mulher nessa condição de vulnerabilidade. E onde estiveram as mulheres enquanto a História acontecia? Elas estavam nos bastidores, muita das vezes dando suporte a esses homens com trabalhos administrativos, contribuindo em várias atuações com sua inteligência, ou cuidando da família, dos filhos, da casa, ou simplesmente esperando que seus homens voltassem vivos ou até mesmo com alguma caça para alimentar seus rebentos, se fizermos uma retrospectiva ainda mais extensa e formos revisitar a pré-história, e os hieróglifos traduzem em desenhos essas narrativas nas paredes das cavernas que um dia foi o lar dessas tribos. 

 Enfim, dei toda essa volta, visitando os primórdios, para nos situarmos melhor na questão histórica, cultural e social visando compreender a razão pela qual o machismo, ainda hoje é tão presente no laço social de forma tão arraigada. Um discurso que me soa como uma herança psíquica transgeracional, que se repete e se repete pedindo simbolização. As heranças transgeracionais são aquelas que se repetem como sintoma, justamente porque não puderam ser elaboradas, ressignificadas. Já as heranças intergeracionais, são heranças psíquicas que puderam ser elaboradas, trabalhadas. Heranças as quais nos sentimos orgulhosos de transmitir às novas gerações. E vale aqui dizer, que aquilo que um dia foi herança transgeracional, pode ser ressignificado e se tornar intergeracional. E isso acontece quando o sujeito olha para a história , não se agra da dela e decide, de alguma forma, mudar, fazer diferente, e brincando com as palavras, mudar os ingredientes da receita para que o bolo saia mais gostoso, mais palatável. Ingrediente vencido pode resultar em bolo solado, não é mesmo?




 E quais são as consequências desse discurso sobre o feminino? Chegamos ao ponto crucial, ou seja, o efeito de tudo isso sobre as mulheres e em suas vidas. Como o machismo impacta a mulher? O efeito de posicionamentos machistas é o que eu mais vejo, não apenas como psicanalista, mas também como mulher, num mundo patriarcal, onde as regras do jogo ainda são ditas pelos homens na sua maioria, e assim como todas as mulheres, sofro os impactos e consequências disto todos os dias, entretanto, sempre alerta e lutando para defender meus espaços e direitos. O efeito de tudo o que falamos até aqui chega através das falas inconformadas de mulheres que mesmo tendo conquistado uma carreira profissional e independência financeira, ainda tenham que continuar lutando diariamente para que não sejam desvalidadas em seus discursos. 

Chega através da queixa recorrente de mulheres que permanecem em relacionamentos abusivos, porque acabam acreditando no discurso de sua impotência, e por essa razão acabam se cristalizando na ideia de que não merecem ser amadas, reconhecidas e tão pouco respeitadas, pois sobre ser mulher é merecer mesmo migalhas, e dito isto, qualquer coisa serve. Também chega na insegurança de não se reconhecer como um sujeito autônomo e capaz de conduzir sua própria vida, de tanto ouvir os mesmos discursos de que mulher não deve sair so zinha, de que ela é um ser frágil, menos inteligente, de que deve permanecer calada suportando tudo, e quando ela se rebela, é nomeada como louca e desequilibrada. 




A insegurança é tamanha, porque esse foi o discurso que ouviu desde menina, que ela chega até mesmo a acreditar de que a culpa do relacionamento não ter dado certo foi dela. De ter sido a única responsável pela criação desfuncional dos filhos, de ter sido ofendida no trânsito, pois afinal de contas “mulher no volante, perigo constante”. E essa é apenas a ponta do iceberg. A lista não caberia nem mesmo num livro de 1.000 páginas, haja vista que o machismo transcende territórios, alcança culturas, povos, etnias, religiões diversas, e em cada um desses espaços de forma mais ou menos intensa, em pleno século XXI, lidamos com a ditadura do machismo.

 Entretanto algo também precisa ser colocado como uma reflexão que pode não agradar muitas mulheres. Será que o discurso machista é posto apenas por homens? Será que muitas mulheres de forma consciente e até mesmo inconsciente não continuam replicando e validando esse discurso? De tanto ouvirem desde muito pequenas de seus pais e muitas vezes de suas próprias mães frases como “fecha a perna menina”, “olha os modos”, “menina não pode falar alto que é feio”, “pare com essa rebeldia”, “tá parecendo um homem, tomando decisões sozinha”, a menina cresce colada na ideia de submissão, impregnada de pré-conceitos. Eis aqui a questão novamente das heranças transgeracionais, que se repetem como efeito daquilo que foi vivido, aprendido, mas que não pôde ser ressignificado.





Já ouvi histórias de várias mulheres que dão provas do quanto o discurso machista se manifesta de forma até mesmo velada em vários espaços. Tenho uma amiga que é doutora em psicanálise e seu companheiro, que também é psicanalista, não tem esse título, mas os porteiros do edifício onde funciona a clínica deles, todos os dias o cumprimenta dizendo “Bom dia Doutor!” e a ela, se dirigem com um “Oi Dona!”. A mesma pessoa comentou que um dos seus amigos, muito próximo inclusive, sempre se referiu ao seu marido como “Fala Doutor”, e mesmo sabendo que ela, também sua amiga, acabara de conquistar seu título de Doutora frente a uma banca desafiadora, nunca se dirigiu a ela dizendo “Fala Doutora!”. Já em outros contextos e espaços, outras amigas próximas se queixam de serem mal atendidas quando precisam ir a uma oficina mecânica, ou que tentam apresentar um orçamento exorbitante, pois afinal de contas, mulher não entende nada de carro, não é mesmo? E muitos homens concordam com essa ideia, acham que não, porque preferem acreditar na grande falácia de nossa menos valia. A mulher desde sempre deixou e ainda deixa marcas incontestáveis na História, dando provas da sua capacidade, resiliência a adaptações.


 Charles Darwin, em seu livro “Evolução das Espécies”, deixa claro que sobrevive não o mais forte, mais aquele que tem a maior capacidade adaptativa, e as mulheres, com toda certeza, durante anos tem dado provas disto. E como costumo dizer, ser mulher é um ato de resistência. Somos como fênix, ressurgimos das cinzas todos os dias, em todas as circunstâncias, lutando contra o discurso machista e provando diariamente o valor do feminino.



por Dra.Andréa Pinheiro- Psicanalista
Mestre e Doutora em Psicanálise, Saúde e Sociedade

terça-feira, 22 de julho de 2025

SOLIDÃO OU SOLITUDE? Do naSER ao envelheSER

 


SOLIDÃO OU SOLITUDE? Do naSER ao envelheSER 


Inicio essa proposta reflexiva trazendo a vocês a letra da música do cantor e compositor Alceu Valença- "Solidão", onde ele fala da ferocidade da solidão que nos devora, que dialoga com o tempo,  descompassa o ritmo de nosso coração e que inerente a nossa localização geográfica, ela nos acompanhará:

SOLIDÃO - ALCEU VALENÇA

 

A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
Solidão

A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua

A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua


Isso dito, divido aqui com vocês, uma escrita, que faz parte de um projeto de antologias que fui convidada a participar. Nele, 20 autores da área "psi", psicanalistas, psicólogos e áreas afins, se dispuseram a escrever sobre o tema. Na parte que me coube, eu a compartilho aqui com meus leitores.

Vamos lá?

Solidão ou Solitude?

-Do nascer ao envelhecer-

 

 [...] a solidão é uma ilusão, porque em última instância a gente nunca está sozinho, mas está com a gente mesmo[...]

(Ana Suy)

 

       Quando recebi o convite para participar deste projeto de antologias, me senti muito desejosa de me colocar aqui como uma colega de leitura, de me aproximar de você leitor e tentar lhe seduzir num bate-papo com bastante intimidade, algo pouco provável quando se escreve uma dissertação de mestrado ou se defende uma tese de doutorado frente a uma banca, já que a linguagem formal é exigida, como uma condição inegociável, pois a nossa proposta nestas páginas é que consigamos estabelecer um diálogo informal e não acadêmico.


    Aqui com vocês a conversa pode ser outra. Aqui, me permitirei falar de forma clara e descontraída, pois sobre a vida cotidiana, é disso que se trata, é sobre vivências e experiências. Aqui, a teoria conta, é claro, pois caso contrário eu não teria sido convidada a dividir com vocês meus conhecimentos, mas o que mais importa de fato é promover um diálogo entre conhecimento e vivência para que haja verdade no que pretendo trazer aqui aos leitores, que acredito estejam curiosos e ansiosos para entender, ou tentar entender afinal de contas, o que é solidão e solitude. Seria a mesma coisa sob perspectivas diferentes? Por que temos falado tanto sobre solidão nos tempos contemporâneos? O que é a solidão para cada um de nós? Será mesmo que a solidão necessariamente tem de estar relacionada a um sentimento de desamparo? Seria a solitude uma reconfiguração da solidão? Sinceramente eu não trago respostas, pois a vida definitivamente não é um gabarito de prova de múltipla escolha, onde dentre as opções de resposta, apenas uma esteja correta. O que eu proponho aqui são reflexões. Se você caro leitor, topa esse desafio, vamos juntos embarcar nessa viagem.






        Tenho lido muito sobre a solidão e solitude nos últimos tempos, talvez por conta da idade. Uma mulher aos seus 59 anos, menopausada, acaba por esbarrar ou porque não dizer, “trombar de frente” com a questão da tão dita solidão, pois o tempo, a transitoriedade acabam por nos colocar diante de uma solidão muito subjetiva. Mas, preciso deixar bem claro, que falo aqui sobre a minha experiência e não tenho a menor pretensão de dizer que toda mulher aos 59 anos e menopausada sinta da mesma forma o que eu trago aqui.         

        Confesso, que mesmo tendo ouvido de muitos escritores que essa coisa de solitude não passa de um jargão ou um modismo cafona, para mim, enquanto escritora e pesquisadora, a palavra solitude faz muito sentido.  Penso que  solitude seja uma oportunidade de ressignificar a sensação de desemparo que a palavra solidão possa nos trazer. Talvez possamos considerar que seja um isolar-se voluntariamente, um voltar-se para si, uma constante aprendizagem em fazer de sua própria presença uma excelente companhia. Dias atrás esbarrei num post do Instagram de autor desconhecido que dizia exatamente isso  que escrevo abaixo sobre a solitude e decidi compartilhar aqui com vocês:


"Solitude é quando você aprende a amar sua companhia. É quando você entende que não há nada de errado em estar sozinho. É quando você se completa, pois o que importa, antes de estar bem com os outros, é estar bem consigo mesmo".







         Mas vamos abrir parênteses aqui sobre esse pequeno texto, principalmente no que se refere ao se completar. É preciso deixar bem claro que não há completude de fato, o que há é uma sensação temporária e ilusória de tamponamento da falta. O sujeito vive às voltas em preencher seus buraquinhos simbólicos para evitar o desprazer, num movimento constante e cíclico, pois logo depois da ilusão do preenchimento da falta, ele cai novamente no vazio. Isso é sobre sermos humanos, e que bom que seja assim, pois essa busca nos movimenta, nos tira da inércia, nos desloca do perigoso lugar da satisfação, que pode nos paralisar.





     O autor Mário Sérgio Cortella, educador e filósofo contemporâneo traz em seu livro “Provocações Filosóficas” uma máxima de Guimarães Rosa ao dizer que o animal satisfeito dorme, ou seja, que a suposta satisfação possa nos colocar num lugar de adormecimento diante da vida, e diferente dos animais irracionais, para nós humanos, esse adormecimento possa ser uma sentença de morte. Desta forma, a inquietação é bem-vinda. Se inquieta quem tem desejo.


     Para além desta consideração, o texto de autor desconhecido conversa com o recorte do livro da autora Ana Suy que trago no início de minha escrita, quando ela diz que a solidão não passa de uma ilusão, pois em última instância, estamos sempre conosco. Talvez seja essa uma das grandes questões. Será que nos damos conta de que sempre estaremos conosco? Essa, a meu ver é a proposta de pensarmos solitude como uma estratégia de reconhecimento de nossa própria companhia.


       Vale dizer que a solidão é uma experiência inerente à espécie humana. O sentimento de solidão nos remete a um estado de desamparo infantil, uma sensação que nos faz voltar à cena primária onde o bebê precisa ser cuidado, amparado e investido para sobreviver. E de certa maneira, seguimos repetindo essa busca durante toda a nossa vida, sempre tentando retornar ao seio da mãe em busca do prazer do acolhimento e da sensação de cuidado e amparo. Freud, o pai da psicanálise, descreveu a solidão como um dos quatro tipos de angústia básica que todos nós experimentamos, juntamente com a angústia da morte e da perda de amor. Aqui as palavras morte e perda podem nos dar a dimensão do que a solidão possa significar para cada sujeito e o quão impactante e desafiador seja para cada um de nós manejá-la.






       Quando nascemos, o parto por si só, já nos coloca neste lugar de ruptura com o ventre materno. Nascer é um evento solitário, por mais que estejamos cercados por uma equipe de profissionais num centro cirúrgico, ou até mesmo em outras circunstâncias mais intimistas como um parto natural em casa. O bebê, no momento em que é dado à luz, no instante em que chega ao mundo, ele está só. Não à toa, costuma-se muitas vezes usar a expressão “um parto” para algo difícil e complexo. Do momento em que se nasce até a velhice e porque não dizer até a morte, seguimos às voltas com nossa solidão. “Ser” do nascer ao envelhecer. Na tentativa de conjugar o verbo SER, seguimos tentando ao longo da nossa vida transformar nossa solidão em solitude.


     Temos a ilusão de conseguir diminuir a angústia da solidão nos aproximando dos excessos e um desses excessos é pensar que em meio a uma multidão não nos sentiremos sós. Ledo engano. Me lembro de uma experiência pessoal que vivi a muitos anos, onde num imenso pavilhão de eventos, cercada de muitos amigos e de uma multidão de pessoas que estavam ali para apreciar o show de um cantor famoso, eu atravessada pelas minhas dores, pois estava passando por um momento difícil em minha vida, desabo a chorar, e nesse instante, cercada de pessoas eu me senti imensamente solitária. Nem mesmo as milhares de pessoas que estavam ali, deram conta de amenizar a minha sensação de desamparo, de recobrir a minha falta, porque a solidão que eu sentia estava em mim, eu me sentia sozinha em mim, me sentia vazia, vivendo o luto de minhas perdas. Lembra quando em alguns parágrafos atrás eu trago as considerações de Freud, o pai da psicanálise, ao dizer que a solidão se equipara à angústia de morte e a perda do amor? Então, eu estava às voltas com isto, tentando elaborar a perda de um grande amor, e me sentia completamente só, mesmo cercada por uma multidão.


         Costumamos tentar suprir nossos vazios, nossa solidão da vida com excessos. Muito consumismo, muita comida, muitos vícios, muita gente, muito tudo. Excessos que transbordam e que no final das contas conseguem suprir absolutamente nada, apenas dão a ilusão de preenchimento, que por ser ilusório se esvai, não se sustenta porque não é genuíno, não é verdadeiro. Talvez seja essa a “pegada” de pensarmos solitude como uma possibilidade de criarmos condições e estratégias de lidarmos com nossa solidão de uma forma criativa e elaborada, dialogando com nossos desejos.


        Simpatizo muito com a ideia de que a solitude seja um autocuidado, uma forma de nos priorizarmos e principalmente ficarmos atentos à manutenção de nossa saúde emocional. Em tempos de excessos, priorizar-se é condição fundamental para nos mantermos minimamente saudáveis, já que o todo é pura ilusão. É muito mais sobre pensarmos qualidade do que quantidade.


         O que a transitoriedade da vida, as metamorfoses pelas quais atravessamos durante a vida nos provoca? Caminhar na direção do envelhecer pode nos trazer muitos desconfortos, pois é uma questão da qual não podemos fugir, mas sim ressignificar, fazer diferente tanto em conceito como em atitudes. Solitude pode ser exatamente isto, um conceito complexo e profundamente pessoal. Para alguns, representa um refúgio tranquilo, uma chance de refletir e recarregar as energias, encontrar-se em si para tentar dar conta das intempéries da vida. E para você? O que é solidão e o que é solitude? Vamos pensar juntos? 


Andréa Pinheiro Bonfante- Doutora e Mestre em Psicanálise- 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Etarismo, como envelhecer numa cultura da beleza?

 


Etarismo, como envelhecer numa cultura da beleza?




 Algumas considerações e curiosidades importantes

Etarismo, o que essa palavra significa?

"Etarismo é o preconceito contra pessoas por causa de sua idade. Esse preconceito afeta pessoas jovens, mas é muito mais comum contra pessoas idosas, se manifestando de diversas maneiras, como na forma como desconsideramos a opinião de uma pessoa apenas por ela ser idosa."


Onde e como ele se manifesta?

O etarismo se manifesta em diversos ambientes, mas principalmente no ambiente familiar, profissional e de saúde. Pode causar graves sequelas psicológicas nas vítimas."

O etarismo é um preconceito?

Sim, esse preconceito pode se manifestar de várias formas, desde estereótipos negativos sobre envelhecimento até a exclusão de pessoas mais velhas de certas atividades ou decisões.

O etarismo pode ser considerado crime?

No Brasil, o Estatuto da Pessoa Idosa considera o etarismo uma forma de violência e, em alguns casos, pode ser enquadrado até mesmo como crime.

Recentemente, iniciativas têm surgido para combater essa discriminação. Por exemplo, no Distrito Federal, foi aprovado um projeto que institui o Dia Distrital de Conscientização contra o Etarismo, celebrado em 15 de junho, com ações educativas e de valorização da população idosa. Além disso, o Festival Cine Inclusão 60+, realizado em São Paulo, busca dar protagonismo a idosos no audiovisual, promovendo debates e oficinas para combater o etarismo no meio artístico.

 

 E a psicanálise, o que ela tem a dizer sobre o ETARISMO?

Psicanálise e Etarismo: Desvendando as Raízes da Discriminação

Etarismo – Escuta Psicanalitica 

Vamos explorar o etarismo sob uma perspectiva psicanalítica. A psicanálise nos ajuda a compreender as complexidades da mente humana e as origens profundas da discriminação. Hoje, mergulharemos nesse tema desafiador para buscar uma compreensão mais profunda.

🔎 O etarismo, assim como outras formas de discriminação, tem suas raízes na mente inconsciente. A psicanálise nos ensina que nossa mente é influenciada por desejos, medos e crenças profundamente arraigados, muitos dos quais adquirimos durante nossa infância.

👶 Na primeira infância, internalizamos mensagens e valores da sociedade ao nosso redor. Isso inclui ideias sobre o envelhecimento e o valor atribuído às diferentes idades. Essas crenças, muitas vezes inconscientes, moldam nossa percepção e comportamento em relação aos outros.

🔄 O etarismo pode ser entendido como um mecanismo de defesa psicológico, no qual projetamos nossos medos e ansiedades em relação ao envelhecimento e à morte nos outros. Ao discriminar os mais velhos, tentamos negar a inevitabilidade do envelhecimento e proteger nossa própria fragilidade e mortalidade.

💡 A psicanálise nos convida a enfrentar nossos medos e preconceitos inconscientes, trazendo-os para a consciência. Ao compreender as motivações ocultas por trás do etarismo, podemos começar a desafiar e desconstruir esses padrões prejudiciais.

💔 É importante lembrar que o etarismo não apenas afeta os mais velhos, mas também tem consequências negativas para aqueles que perpetuam a discriminação. Ao dividir a sociedade em grupos baseados na idade, perdemos a oportunidade de aprender com a sabedoria acumulada dos mais velhos e limitamos nossa própria compreensão do mundo.

🌱 A jornada de superar o etarismo começa com a autorreflexão. Ao questionar nossos próprios preconceitos e estar abertos ao diálogo, podemos começar a desmantelar os estereótipos que sustentam a discriminação etária.

🤝 Vamos abraçar a diversidade etária e valorizar o conhecimento e a experiência de todas as gerações. A psicanálise nos ensina que a compreensão mútua e a aceitação são os alicerces para a construção de uma sociedade mais inclusiva e respeitosa.

  

IMPACTOS DO ETARISMO SOBRE A SAÚDE MENTAL

Impactos do etarismo sobre a saúde mental - SBGG

 

Você sabia que sofrer etarismo amplia as chances de ansiedade e depressão?

 

Impactos do etarismo sobre a saúde mental - SBGG

O etarismo tem um impacto significativo na saúde mental dos idosos. Estudos mostram que o etarismo pode levar a problemas como depressão, ansiedade e isolamento social. A desvalorização constante da idade pode afetar a autoestima e a qualidade de vida, resultando em uma diminuição da expectativa de vida e no desenvolvimento de doenças cardiovasculares. A mídia, em particular, tem um papel importante, pois pode perpetuar estereótipos negativos e perpetuar o ciclo de preconceito. Para combater o etarismo, é essencial promover a inclusão e desafiar estereótipos, além de adotar políticas públicas que respeitem os direitos humanos e a capacidade de cada indivíduo alcançar seu pleno potencial. 



O Etarismo e a cultura da beleza

 

O etarismo e a cultura da beleza estão profundamente interligados, especialmente na forma como a sociedade valoriza a juventude e impõe padrões estéticos rígidos. O etarismo na estética se manifesta na pressão para que as pessoas, principalmente mulheres, mantenham uma aparência jovem, muitas vezes recorrendo a procedimentos estéticos ou escondendo sinais naturais do envelhecimento.

A cultura da beleza reforça a ideia de que a juventude é sinônimo de valor e atratividade, enquanto o envelhecimento é visto como um declínio. Isso impacta a autoestima e a saúde mental, levando muitas pessoas a sentirem que precisam "lutar contra o tempo" para permanecerem aceitas socialmente. Atrizes e figuras públicas têm se posicionado contra essa pressão, destacando a importância de aceitar o envelhecimento como um processo natural e digno.



Etarismo: entenda o que é e quais os impactos na vida da mulher

Etarismo: entenda o que é e quais os impactos na vida da mulher | Beleza | gshow

Se você já ouviu frases como: “Você não tem mais idade para isso”, “Você deve ter sido uma jovem muito bonita”, “Você não tem mais idade para usar essa roupa” ou “Você está ótima para a sua idade! Nem parece”, é hora de debater e combater a discriminação por idade e que acomete, principalmente, as mulheres.

“Nos anos de 1960, o termo foi criado pelo médico norte-americano, Robert Butler, um estudioso sobre envelhecimento e longevidade. Ele usou o termo em inglês “ageism” em uma derivação de age (idade) para se referir ao preconceito relacionado à idade”, explica Ediane Ribeiro, psicóloga especialista em traumas.

“Embora o etarismo possa atingir tanto homens quanto mulheres, há uma cultura em que o preconceito contra o envelhecimento feminino é maior e mais cruel."


"Se olharmos para dados como: ‘mulheres acima dos 45 anos em cargos relevantes nas empresas’ e ‘estereótipos relacionados ao envelhecimento do corpo feminino e à menopausa’, vamos perceber que as mulheres são mais julgadas em relação à aparência física, suas capacidades e habilidades, em relação ao seu valor com a maturidade”.

Como qualquer outro tipo de preconceito, o etarismo causa inúmeros danos a quem sofre e, muitas vezes, é praticado de forma velada.

Na mulher, tem grande impacto na saúde e na autoestima: "As mulheres, após os 40 anos, enfrentam o mito de serem menos produtivas, devido à queda da função reprodutiva, o que pode gerar uma espécie de exclusão social, tanto no mercado de trabalho, quanto em outros ambientes, como o familiar, onde sua credibilidade de conhecimento, competência ou a forma como lida com as situações do dia a dia e com os seus sentimentos podem ser questionados devido ao fato dela estar envelhecendo”, e esta mulher se sente sozinha, por falta de informação, diálogo e acolhimento, nesta fase. As percepções de mudanças no corpo (cabelo, pele, humor, energia), em decorrência da queda hormonal, colaboram para um sentimento, muitas vezes, de ansiedade e depressão que minam a sua autoestima e saúde”

DESrespeito 


Como identificar o etarismo?



 Manifestações de discriminação por idade são vistas em diversas situações do cotidiano. No mercado de trabalho, alguns sinais de alerta são:

  • Maior dificuldade de empregabilidade por pessoas acima dos 50 anos;
  • Quando a empresa tem um padrão em que se identifica pouca contratação ou promoção de pessoas acima dos 40 anos, principalmente mulheres;
  • Quando os colaboradores relatam sensação de insegurança quanto à manutenção de seus empregos em função da idade;
  • Remanejamento de pessoas mais velhas para atividades ou cargos menos valorizados;
  • Comentários e piadas dentro da empresa que tem como foco a questão da idade dos colaboradores, por exemplo, associando idade à ineficiência, dificuldade de adaptação ou menor produtividade.

Além disto tudo já posto, também podemos identificar sinais de preconceito em comentários sobre como uma pessoa dever se vestir ou o que pode ou não fazer em função da idade. No âmbito familiar, muitas vezes, os idosos começam a ser infantilizados e, suas opiniões, desconsideradas.


A pergunta que não quer calar- Como envelhecer de maneira saudável numa cultura da beleza?

Cada uma encontrará seu próprio caminho, disso não há dúvidas. E você, o que pensa sobre isso?

A reflexão é urgente e necessária. Nada muda se a gente não mudar. Repetir discursos pré-moldados que nos engessam na cegueira social e cultural só reforça a repetição de padrões.


Não se render aos padrões e códigos de beleza nas vitrines do contemporâneo é por si só um ato de resistência. O primeiro passo talvez seja nos questionarmos diante daquilo que insiste em nos convencer de que devamos cegamente nos fazer caber em moldes ultrapassados e limitadores de uma suposta beleza encomendada que vai na contramão da condição de sermos humanos e multifacetados.

 

Profa. Dra. Andréa Pinheiro Bonfante- Doutora e Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade.

 

 


quinta-feira, 15 de maio de 2025

A atemporalidade no processo de análise

 




A  ATEMPORALIDADE NO PROCESSO DE ANÁLISE

 


Trago a vocês um fragmento de minha tese de Doutorado cujo tema é: “O Tempo da Adolescência: A Transitoriedade Como um dos Nomes da Castração. Nessa pesquisa, destacam-se algumas palavras chaves, dentre elas, adolescência, castração, tempo, transitoriedade, arte. Entretanto, nós bem sabemos que uma pesquisa, principalmente uma tese que leva 4(quatro) anos para ser desenvolvida, não se restringe apenas ao título, mas principalmente à inquietação ao qual você autor, foi levado a dedicar seu tempo e desejo pautado na hipótese dessa pesquisa, e no meu caso, a hipótese é de fazer pensar que tempo é esse.

Desta forma, durante o processo de escrita da pesquisa, esbarro em outros significantes, tais como juventude, beleza e principalmente “atemporalidade”, e o que principalmente nos interessa aqui é falarmos da atemporalidade num processo de análise, e não apenas ao que se restringe ao tempo da análise 30(trinta), 40(quarenta)ou 50(cinquenta) minutos, dentro de um consultório, pela janela virtual no atendimento on-line, na cabeceira de uma cama hospitalar ou de um paciente adoentado que você vá atender em domicílio. Estamos também e principalmente nos referindo às narrativas do analisando que não cumprem uma lógica linear, que transitam dentre passado, presente e futuro e não necessariamente nessa ordem, pois esse tempo Chronos, que é o tempo dos minutos, das horas, do calendário, ele se mistura com o tempo kairós, que é da ordem da não ordem , do subjetivo, das hiâncias, dos intervalos e da história de cada sujeito.

A prova disto foi o fragmento de um caso clínico que levei para minha tese e que pautei toda a minha pesquisa para falar deste tempo. E para que eu possa contextualizar e que vocês possam entender minha proposta de falar da atemporalidade num processo de análise, deixe-me fazer um brevíssimo resumo deste caso clínico:

Priscila, nome fictício da analisanda, chega à clínica por volta de seus 45 (quarenta e cinco) anos. Mãe de duas filhas de casamentos distintos, envolvida em seu terceiro relacionamento quando chega à análise, traz como queixa principal a sensação de ter tido sua ‘ADOLESCÊNCIA ROUBADA”. Praticamente tudo gira em torno dessa sua fala. Priscila se queixa de não ter podido viver sua adolescência na plenitude que ela desejava, pois segundo ela, havia sido primeiro roubada pelos pais severos e uma criação extremamente conservadora e depois como consequência de suas escolhas, por dois casamentos abusivos, que a tomaram seus anos dourados.

A analisanda carrega nas suas narrativas lembranças de um saudosismo intenso da infância feliz que teve e na contramão dessas doces memórias e dos momentos conturbados de sua adolescência, etapas não vividas, um sequestro de sua subjetividade, uma pergunta constante “Quem me roubou de mim?” rondava a cena analítica em cada sessão. Adolescência, infância, vida adulta se misturavam resultando em conflitos, conflitos estes que a levaram a procurar pela análise.

Por conta dessa sensação de perda, de ter tido a adolescência roubada, Priscila vivia às voltas em tentar recuperar o “Tempo” perdido. Mas seria possível recuperar o tempo? Essa tentativa a mantinha presa em suas próprias memórias, mantendo-as presa na cena de sua infância e principalmente de sua adolescência. Durante a escrita de minha tese, uma frase do psicanalista Contardo Calligaris não me saia da cabeça: “Somos restos e rastros de nossa infância”.

O que o analisando leva enquanto narrativa e queixa daquilo que desfunciona em sua vida, é pautado numa atemporalidade, num ir e vir, num de trás para frente. Quase como numa máquina do tempo, fazemos essa viagem entre passado, presente e futuro, misturando as estações onde primavera, verão, outono e inverno se fazem presentes em um único dia, em uma única sessão.

Não há cronologia linear no discurso do analisando, pois a cronologia é temporal, enquanto o tempo da análise é atemporal, o que há é justamente essa atemporalidade que é preciso ter ouvidos para ouvir aquilo que vai nas entrelinhas, no não dito, no silêncio e na não linearidade. Se o analista busca sequência lógica de eventos para dar escuta ao seu analisando, provavelmente estará fadado a uma não escuta e provavelmente a impossibilidade de uma análise.

Por outro lado, o paciente que se prende a essa necessidade cronológica do tempo, se não atravessado por uma pontuação do analista na direção de fazê-lo perceber que  a narrativa pode ser livre, que seu discurso não precisa estar alinhado com a lógica que se pressupõe a correta, ele , o analisando, muito provavelmente deixará de dizer de si. E o analisando tenta trazer essa metrificação porque justamente a sociedade e os laços sociais aos quais estamos inseridos, nos cobram essa suposta lógica do tempo e da métrica que nos leva a uma não lógica, a um non-sense, um contrassenso, um sem sentido, onde o sujeito continua repetindo na cena analítica um sintoma o qual o leva ao sofrimento psíquico daquilo ao qual é constantemente cobrado.

O tempo da análise é um outro tempo. O tempo da análise é um Inconsciente em cena., onde o analisando atua e performa na sua não lógica e sua não linearidade para tentar dizer de suas angústias, de seus incômodos. Jacques Lacan traz uma máxima ao dizer que o artista já sabe aquilo que o psicanalista supõe. Por isso, seguindo a mesma lógica de Freud, me lambuzo e me permito a essa audaciosa proposta de me lambuzar de arte. Na música de Caetano Veloso “Oração ao tempo”, diga-se de passagem, uma poesia cantada, o autor coloca o tempo como o compositor de destinos e como um dos bens imateriais mais valiosos do mundo, justamente por ser irrecuperável e inelástico. Ele considera que sua perda pode trazer máculas expressivas e irreversíveis, mas não necessariamente depreciativas, devido à possibilidade de reinvenção. Por essa razão, sendo o “compositor do destino”, o autor faz uma proposta: que o tempo possa ser inventivo e nos traga brilho e movimento, estabelecendo conosco um outro tipo de vínculo, embelezado pelas surpresas do cotidiano. E não é justamente isso que a psicanálise propõe? Ressignificar.

A reflexão trazida aqui, inspirada na música de Caetano Veloso, leva-nos a considerar que coisas que envelhecem, em vez de perderem valor, agregam ainda mais significado, como o vinho, a arte, os fósseis e as civilizações. Essa ideia encontra suporte nas considerações de Freud em seu ensaio “Sobre a Transitoriedade”, que afirma que a transitoriedade do que é belo não implica uma perda de valor, mas sim um aumento. O valor, segundo Freud (1916[1915]), está justamente na escassez do tempo, pois aquilo que é limitado eleva o valor de seu desfrute.

Entretanto, percebe-se que a consciência da finitude do tempo e do belo pode comprometer o discernimento de algumas pessoas, justamente por antecipar a ideia de luto pela morte de toda beleza transitória. Isso nos faz recuar instintivamente, quase como um mecanismo de defesa — uma negação diante de algo que nos é penoso. O luto daquilo que se “perdeu”. O luto da infância, da adolescência, da beleza e da juventude pode nos colocar diante de uma sensação de perda irreparável. Somos tomados  pelo desalento da fluidez daquilo que é belo e novo.

Fazendo uma correlação com o caso clínico resumidamente apresentado aqui, podemos pensar que Priscila estivesse enlutada, tomada pela sensação de perda de algo que, para ela, sempre foi de grande valia: sua adolescência. A transitoriedade da vida, atrelada ao tempo de “dentes afiados”, parece ter devorado sua existência em vários aspectos — a infância que ficou para trás, marcada pela mudança da casa em que viveu desde que nasceu; a adolescência, que ela julga ter sido roubada; o tempo, que considera perdido; e a juventude, que se foi.

O psicanalista em formação, muito provavelmente se encontrará com muitas “Priscilas” em seu consultório, se queixando do tempo não vivido, da velocidade dele e até mesmo assistindo a viagem no tempo de cada história contada, ou então como analisando, às voltas com sua própria análise, se verá como Priscila se queixando disto tudo, como se uma retrospectiva de sua vida se desenhasse diante de si durante toda a narrativa, quando ao dirigir sua fala ao analista, você analisando, acaba tendo a oportunidade de se ouvir.

Mas se há algo que a psicanálise verdadeiramente propõe é que o sujeito possa ressignificar sua história, e encerrando a escrita que me propus trazer nesse fragmento de tese, deixo como reflexão um pensamento que aprecio muito e trago aqui uma citação do livro de Mário Sérgio Cortella, “Provocações Filosóficas”.  Cortella não é um psicanalista , mas um educador e pensador contemporâneo com as quais muitas de suas propostas reflexivas eu me identifico bastante. Cortella diz que: “Não nascemos prontos e vamos nos gastando, nascemos não prontos e vamos nos fazendo”. Não seria essa uma boa reflexão para pensarmos a atemporalidade num processo de análise?

Eu encerro meu convite à possíveis reflexões do leitor com essa fala de Cortella  e os convido a tantas outras  que essas linhas possam suscitar, lembrando que o psicanalista é sobre autorizar-se, não sobre nomear-se, e que seu próprio percurso de formação traz notícias de uma atemporalidade. E quanto ao tempo de análise de um paciente também é sobre uma atemporalidade, que se desenha a cada encontro, a cada sessão.

Deixo aqui essa inquietação com vocês, pois elas são sempre bem-vindas e por si só já falam de uma atemporalidade, pois não há como viver sem se inquietar, desde o nascimento até a morte, atravessados pelas transitoriedades da vida, que a cada estação se desenham a seu modo, tal como propõe Freud em seu ensaio “Sobre a Transitoriedade”

 

 Dra. Andréa Pinheiro Bonfante (Mestre e Doutora em Psicanálise)