SOLIDÃO OU SOLITUDE? Do naSER ao envelheSER
Inicio essa proposta reflexiva trazendo a vocês a letra da música do cantor e compositor Alceu Valença- "Solidão", onde ele fala da ferocidade da solidão que nos devora, que dialoga com o tempo, descompassa o ritmo de nosso coração e que inerente a nossa localização geográfica, ela nos acompanhará:
SOLIDÃO - ALCEU VALENÇA
A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
Solidão
A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua
A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua
Isso dito, divido aqui com vocês, uma escrita, que faz parte de um projeto de antologias que fui convidada a participar. Nele, 20 autores da área "psi", psicanalistas, psicólogos e áreas afins, se dispuseram a escrever sobre o tema. Na parte que me coube, eu a compartilho aqui com meus leitores.
Vamos lá?
Solidão ou Solitude?
-Do nascer ao envelhecer-
[...] a
solidão é uma ilusão, porque em última instância a gente nunca está sozinho,
mas está com a gente mesmo[...]
(Ana Suy)
Quando
recebi o convite para participar deste projeto de antologias, me senti muito
desejosa de me colocar aqui como uma colega de leitura, de me aproximar de você
leitor e tentar lhe seduzir num bate-papo com bastante intimidade, algo pouco
provável quando se escreve uma dissertação de mestrado ou se defende uma tese
de doutorado frente a uma banca, já que a linguagem formal é exigida, como uma
condição inegociável, pois a nossa proposta nestas páginas é que consigamos
estabelecer um diálogo informal e não acadêmico.
Aqui com
vocês a conversa pode ser outra. Aqui, me permitirei falar de forma clara e
descontraída, pois sobre a vida cotidiana, é disso que se trata, é sobre
vivências e experiências. Aqui, a teoria conta, é claro, pois caso contrário eu
não teria sido convidada a dividir com vocês meus conhecimentos, mas o que mais
importa de fato é promover um diálogo entre conhecimento e vivência para que
haja verdade no que pretendo trazer aqui aos leitores, que acredito estejam
curiosos e ansiosos para entender, ou tentar entender afinal de contas, o que é
solidão e solitude. Seria a mesma coisa sob perspectivas diferentes? Por que
temos falado tanto sobre solidão nos tempos contemporâneos? O que é a solidão
para cada um de nós? Será mesmo que a solidão necessariamente tem de estar
relacionada a um sentimento de desamparo? Seria a solitude uma reconfiguração
da solidão? Sinceramente eu não trago respostas, pois a vida definitivamente
não é um gabarito de prova de múltipla escolha, onde dentre as opções de
resposta, apenas uma esteja correta. O que eu proponho aqui são reflexões. Se
você caro leitor, topa esse desafio, vamos juntos embarcar nessa viagem.

Tenho lido muito sobre a solidão e
solitude nos últimos tempos, talvez por conta da idade. Uma mulher aos seus 59
anos, menopausada, acaba por esbarrar ou porque não dizer, “trombar de frente”
com a questão da tão dita solidão, pois o tempo, a transitoriedade acabam por nos colocar diante de uma
solidão muito subjetiva. Mas, preciso deixar bem claro, que falo aqui sobre a
minha experiência e não tenho a menor pretensão de dizer que toda mulher aos 59
anos e menopausada sinta da mesma forma o que eu trago aqui.
Confesso, que mesmo tendo ouvido de
muitos escritores que essa coisa de solitude não passa de um jargão ou um
modismo cafona, para mim, enquanto escritora e pesquisadora, a palavra solitude
faz muito sentido. Penso que solitude seja uma oportunidade de
ressignificar a sensação de desemparo que a palavra solidão possa nos trazer.
Talvez possamos considerar que seja um isolar-se voluntariamente, um voltar-se
para si, uma constante aprendizagem em fazer de sua própria presença uma excelente
companhia. Dias atrás esbarrei num post do Instagram de autor desconhecido que
dizia exatamente isso que escrevo abaixo
sobre a solitude e decidi compartilhar aqui com vocês:
"Solitude é
quando você aprende a amar sua companhia. É
quando você entende que não há nada de errado em estar sozinho. É quando você
se completa, pois o que importa, antes de estar bem com os outros, é estar bem
consigo mesmo".
Mas
vamos abrir parênteses aqui sobre esse pequeno texto, principalmente no que se refere ao se completar. É
preciso deixar bem claro que não há completude de fato, o que há é uma sensação
temporária e ilusória de tamponamento da falta. O sujeito vive às voltas em
preencher seus buraquinhos simbólicos para evitar o desprazer, num movimento
constante e cíclico, pois logo depois da ilusão do preenchimento da falta, ele
cai novamente no vazio. Isso é sobre sermos humanos, e que bom que seja assim,
pois essa busca nos movimenta, nos tira da inércia, nos desloca do perigoso
lugar da satisfação, que pode nos paralisar.
O autor
Mário Sérgio Cortella, educador e filósofo contemporâneo traz em seu livro
“Provocações Filosóficas” uma máxima de Guimarães Rosa ao dizer que o animal
satisfeito dorme, ou seja, que a suposta satisfação possa nos colocar num lugar
de adormecimento diante da vida, e diferente dos animais irracionais, para nós
humanos, esse adormecimento possa ser uma sentença de morte. Desta forma, a
inquietação é bem-vinda. Se inquieta quem tem desejo.
Para além
desta consideração, o texto de autor desconhecido conversa com o recorte do
livro da autora Ana Suy que trago no início de minha escrita, quando ela diz
que a solidão não passa de uma ilusão, pois em última instância, estamos sempre
conosco. Talvez seja essa uma das grandes questões. Será que nos damos conta de
que sempre estaremos conosco? Essa, a meu ver é a proposta de pensarmos
solitude como uma estratégia de reconhecimento de nossa própria companhia.
Vale
dizer que a solidão é uma experiência inerente à espécie humana. O sentimento
de solidão nos remete a um estado de desamparo infantil, uma sensação que nos
faz voltar à cena primária onde o bebê precisa ser cuidado, amparado e
investido para sobreviver. E de certa maneira, seguimos repetindo essa busca
durante toda a nossa vida, sempre tentando retornar ao seio da mãe em busca do
prazer do acolhimento e da sensação de cuidado e amparo. Freud, o pai da psicanálise,
descreveu a solidão como um dos quatro tipos de angústia básica que todos nós
experimentamos, juntamente com a angústia da morte e da perda de amor. Aqui as
palavras morte e perda podem nos dar a dimensão do que a solidão possa
significar para cada sujeito e o quão impactante e desafiador seja para cada um
de nós manejá-la.

Quando
nascemos, o parto por si só, já nos coloca neste lugar de ruptura com o ventre
materno. Nascer é um evento solitário, por mais que estejamos cercados por uma
equipe de profissionais num centro cirúrgico, ou até mesmo em outras
circunstâncias mais intimistas como um parto natural em casa. O bebê, no
momento em que é dado à luz, no instante em que chega ao mundo, ele está só.
Não à toa, costuma-se muitas vezes usar a expressão “um parto” para algo difícil
e complexo. Do momento em que se nasce até a velhice e porque não dizer até a
morte, seguimos às voltas com nossa solidão. “Ser” do nascer ao envelhecer. Na
tentativa de conjugar o verbo SER, seguimos tentando ao longo da nossa vida
transformar nossa solidão em solitude.
Temos a
ilusão de conseguir diminuir a angústia da solidão nos aproximando dos excessos
e um desses excessos é pensar que em meio a uma multidão não nos sentiremos
sós. Ledo engano. Me lembro de uma experiência pessoal que vivi a muitos anos,
onde num imenso pavilhão de eventos, cercada de muitos amigos e de uma multidão
de pessoas que estavam ali para apreciar o show de um cantor famoso, eu
atravessada pelas minhas dores, pois estava passando por um momento difícil em
minha vida, desabo a chorar, e nesse instante, cercada de pessoas eu me senti
imensamente solitária. Nem mesmo as milhares de pessoas que estavam ali, deram
conta de amenizar a minha sensação de desamparo, de recobrir a minha falta,
porque a solidão que eu sentia estava em mim, eu me sentia sozinha em mim, me
sentia vazia, vivendo o luto de minhas perdas. Lembra quando em alguns
parágrafos atrás eu trago as considerações de Freud, o pai da psicanálise, ao
dizer que a solidão se equipara à angústia de morte e a perda do amor? Então,
eu estava às voltas com isto, tentando elaborar a perda de um grande amor, e me
sentia completamente só, mesmo cercada por uma multidão.
Costumamos tentar suprir nossos
vazios, nossa solidão da vida com excessos. Muito consumismo, muita comida,
muitos vícios, muita gente, muito tudo. Excessos que transbordam e que no final
das contas conseguem suprir absolutamente nada, apenas dão a ilusão de
preenchimento, que por ser ilusório se esvai, não se sustenta porque não é
genuíno, não é verdadeiro. Talvez seja essa a “pegada” de pensarmos solitude
como uma possibilidade de criarmos condições e estratégias de lidarmos com
nossa solidão de uma forma criativa e elaborada, dialogando
com nossos desejos.
Simpatizo
muito com a ideia de que a solitude seja um autocuidado, uma forma de nos
priorizarmos e principalmente ficarmos atentos à manutenção de nossa saúde
emocional. Em tempos de excessos, priorizar-se é condição fundamental para nos
mantermos minimamente saudáveis, já que o todo é pura ilusão. É muito mais
sobre pensarmos qualidade do que quantidade.
O que a
transitoriedade da vida, as metamorfoses pelas quais atravessamos durante a
vida nos provoca? Caminhar na direção do envelhecer pode nos trazer muitos
desconfortos, pois é uma questão da qual não podemos fugir, mas sim
ressignificar, fazer diferente tanto em conceito como em atitudes. Solitude
pode ser exatamente isto, um conceito complexo e profundamente pessoal. Para
alguns, representa um refúgio tranquilo, uma chance de refletir e recarregar as
energias, encontrar-se em si para tentar dar conta das intempéries da vida. E
para você? O que é solidão e o que é solitude? Vamos pensar juntos?
Andréa Pinheiro Bonfante- Doutora e Mestre em Psicanálise-