Psicanalista Mestre e Doutoranda em Psicanálise

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

TRANSFERÊNCIA E APRENDIZAGEM, uma visão da psicanálise, por Andréa Pinheiro




TRANSFERÊNCIA E A APRENDIZAGEM
 A TRANSFERÊNCIA EM FREUD E LACAN


A presente matéria lança um olhar sobre as relações entre professores e alunos, num posicionamento não apenas horizontal, mas também vertical que se expressa pela hierarquia nessa relação, propondo pensar de que forma ela possa ser compreendida como uma transferência entre as partes e o quanto isso possa influenciar nos processos de aprendizagem que se estabelecem no ambiente escolar e deslizam pra vida desse sujeito transitando entre o simbólico, o imaginário e o real promovendo inclusive percepções e posicionamentos sobre suas dinâmicas de vida e ao longo dela.

Que lugar de mestre seria esse que a figura do professor ocupa de sujeito suposto saber (S-s-S), professor esse movido pelo desejo, numa função de tamanha relevância no qual gira o processo de aprendizagem e que em contrapartida possa vir a despertar no aluno um desejo de aprender, tão fundamental para que a aprendizagem ocorra, e que isso se estabeleça justamente na transferência entre as partes como um fenômeno originalmente espontâneo.

É relevante compreendermos e discutirmos sobre as relações, estabelecidas entre professores e alunos, inicialmente de forma espontânea segundo Freud. Elas nos darão notícias sobre como o processo de aprendizagem nas instituições escolares ocorra, entendendo que essa transferência fale de uma realidade ambígua entre o velho e o jovem, a distância e a proximidade, uma estranheza quanto a aceitarmos ordens sem que as contestássemos a princípio, independente de nossa idade, como se já não tivéssemos vivência suficiente para questionar essas ordens recebidas de nossos mestres.

Ao nos defrontarmos com esse cenário, deparamo-nos com as reminiscências de nossa vivência escolar pregressa dando-nos conta de que ela se manifesta no decurso de nossa vida, para o conhecimento humano e por conta dessa percepção, já que somos sujeitos identificados, constituídos e transformados por aspectos, traços, valores e atributos da cultura na qual estamos imersos, sublinhando as três categorias conceituais de Lacan: o simbólico, o imaginário e o real.

Esse registro do simbólico que é lugar fundamental da linguagem, fala da relação do sujeito com o grande Outro, que no sujeito envolve aspectos conscientes e inconscientes, o que significa que a maneira como esse inconsciente se manifesta se dá através da linguagem, e é por meio dela que os significantes (sistema de representações) nos dão notícias desse sujeito. O imaginário como registro psíquico corresponde ao eu do sujeito que busca no Outro (pessoas, amor, imagem, objeto) uma sensação de completude, dando-se conta de alguma forma que esse Outro não existe tal qual ele projeta ou deseja se vir projetado. Já o real é o impossível, aquilo que não se possa ser simbolizado, o indizível, aquilo que permanece impenetrável no sujeito. É um registro psíquico com o qual não se possa ser confundido no senso comum com a realidade.

O que nos foi ensinado e o quanto disso conseguimos aprender, passa a ser mais claramente sentido na aplicabilidade desses saberes em nossa vida adulta e profissional, e conseguimos perceber com razoável clareza a influência positiva que alguns mestres nos legaram motivando-nos, e porque não dizer influenciando-nos com determinadas tendências, posicionamentos e pontos de vista, enquanto que outros ao contrário, nos bloquearam em determinadas percepções que deslizam desde suas posturas até os conhecimentos dos quais eram detentores.

No processo de aprendizagem formal (instituições escolares), há algo de ambivalente no que se refere aos sentimentos do aprendente em relação ao ensinante, que remetem estes à relação primeira que tiveram com aqueles que lhes cuidaram, tais como pais, avós, babás, irmãos ou irmãs. Transferem para relacionamentos posteriores as imagos dessas relações. Atribuindo antipatias e simpatias às pessoas com as quais lidaram tal como uma herança emocional.
Dada a importância dessa relação de transferência precisamos também refletir sobre o lugar de mestre, de sujeito suposto saber que essa figura nomeada professor ocupa para seus alunos e que movido por esse desejo se ocupa de uma função na qual gira todo o processo de aprendizagem, e que possa despertar ou até mesmo interferir de forma negativa no desejo de aprender do aluno, desejo esse fundamental nesse processo.
O objetivo desse artigo é promover um questionamento acerca das razões as quais levem o aluno à aprendizagem ou à  não aprendizagem ou dificuldade dela e o quanto a transferência estabelecida entre as partes possa facilitar ou comprometer esse processo tanto desse lugar ao qual o aluno ocupa para o professor , assim como o lugar ao qual o professor se coloque ou que ocupe para esse aluno, na condição (S-S-S) sujeito suposto saber e /ou mestre.
Entender os motivos que levem os alunos a estabelecerem relações com as imagos de suas relações anteriores com a dos professores, que possam vir a comprometer esse processo de aquisição de conhecimentos e de vivências ao qual nomeamos aprendizagem.
Rinaldi cita Freud ao dizer que originalmente a transferência foi descoberta por ele como um fenômeno que acontece de forma espontânea, e que de acordo com a experiência psicanalítica, assume o lugar de conceito, conceito esse que Jacques Lacan vai sublinhar como o próprio conceito da prática psicanalítica, formulando a noção de sujeito suposto saber. Lacan ainda afirma no Seminário XI, que o conceito de transferência é determinado pela função que essa práxis ocupa e que “nenhuma práxis mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real” (LACAN-p.55)
 Essas duas afirmações permitem pensar a direção que dará à discussão da transferência, como mola mestra da análise, e à posição do psicanalista frente a esse instrumento, na condução de uma experiência analítica. A ênfase no real como o vetor que orienta esta práxis, nos chama a atenção para a importância que dará à noção de desejo do analista como função essencial em torno da qual gira o movimento da análise. Em suas palavras, “…o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a transferência.
O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu designo aqui como função essencial”(Ibidem, p.222)
Num contraponto entre a práxis psicanalítica e a práxis docente podemos considerar que assim como o desejo está como mola mestre da análise, o desejo também está para o processo de aprendizagem. A posição do mestre talvez possa ocupar um lugar tão relevante para o aprendente, assim como o lugar que o psicanalista ocupa para seu analisando. Entretanto, enquanto a análise dá ênfase ao real como o vetor que orienta essa práxis, a práxis docente em contrapartida, dá ênfase ao simbólico que é lugar fundamental da linguagem e ao imaginário que fala da relação do sujeito com o grande Outro, que neste caso é o professor.
Considerando entretanto que o desejo seja o pivô, a mola mestre que movimente essas duas práxis, podemos dizer que o desejo seja alimentado, nutrido, pela transferência em ambos. Se o que há por trás do discurso do paciente seja a demanda, também o possa ser para o aluno. Quando falamos desejo na práxis docente podemos pensar num movimento horizontal que desliza entre o docente e o discente. E não seria esse o ponto comum desse duplo machado? Um desejo, uma demanda, uma transferência que transita entre o analista e o analisando, entre o mestre e o aluno, e que em ambas as práxis ocupam um lugar de função essencial.
Autora:
Andréa Pinheiro Bonfante- Psicanalista e Psicopedagoga- Mestre e Doutoranda em Psicanálise, Docente do Instituto IBRAPCHS- RJ, Diretora e sócia do Espaço Vida Plena- Valença-RJ, Autora do livro "A Psicanálise e a Clínica do Autismo Infantil"

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

ROTULAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO ABUSIVA DE NOSSAS CRIANÇAS

 




ROTULAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO EXCESSIVA DE NOSSAS CRIANÇAS



“O disciplinamento médico na sociedade higienista passa pela fabricação de crianças, futuros homens rijos que, desde a mais tenra idade, devem ser acompanhados por médicos para que um dia estejam prontos para oferecer docilmente suas vidas ao país”*.

Há na sociedade contemporânea uma necessidade desastrosa em definir e rotular o que não se pode nem ser definido e tampouco rotulado, ou seja, a subjetividade de nossas crianças. Numa sociedade imediatista onde nada pode ser deixado para depois, não se pode perder tempo observando, esperando, permitindo ou ao menos deixando ser; acaba-se caindo num imenso engodo, que é a urgência de se definir agora, de não esperar, de não observar, de não se permitir e muito menos deixar ser.

Curioso observar que o que mais ouvimos da sociedade de uma forma geral é o quanto se preocupam com o futuro de nossa geração. Será mesmo? O que desejamos de fato para nossas crianças? Será que estamos comprometidos nessa missão de orientá-las e ampará-las ou apenas fingindo que nos importamos? Será que já paramos para ouvir o que de fato eles desejam ou os colocamos numa posição "assujeitada" aos nossos valores morais e financeiros? Fica aqui o questionamento.

Esse modelo nos remete à posição da criança da Época Medieval onde era vista como um adulto miniatura, sem ser ouvida, sendo desrespeitada na sua condição de sujeito, como sabiamente diz a psicóloga, psicanalista, mestre em pesquisa e clínica em psicanálise Terezinha Costa. Nessa época, a criança era vista como um pequeno adulto, sem características que o diferenciassem, e desconsiderada como alguém merecedor de cuidados especiais, relacionando-se muito mais com a comunidade do que com os próprios pais. E não é disso que se trata? Num discurso preso à uma urgência de prepará-los para o sucesso, acabamos por formar robores “zumbificados”, onde aquele que questiona, reclama, não aceita ou pensa fora do senso comum logo é rotulado de hiperativo, com transtornos, mal educado,  e tantas outras definições que possam vir a ser convenientes. E nesse caso, o que fazer? Que providência tomar? Medicar é lógico. SÓ QUE NÃO!. Não é disso que se trata, como diz nosso sábio Psicanalista Jacques Lacan.

“Hoje já podemos falar em aprendizagem sem necessariamente pensar num modelo único e puramente de transmissão de saber. Existem diversos modelos e uma vasta forma de trabalhar a educação, claro que umas que possibilitam mais autonomia e outras que ainda prendem o sujeito numa alienação, que o impede de ver o mundo com seus próprios olhos”. (JACQUES LACAN)¹

Há várias vertentes sobre essa questão, e o que também não podemos deixar de abordar é o quanto estamos comprometendo toda uma geração, impedindo-as de sonharem, de idealizarem, de se constituírem enquanto sujeitos. A situação é tão grave que inspirou a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a fazer uma declaração bombástica: “A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro”, disse ela em entrevista ao Portal Unicamp. “Quem está sendo medicado são as crianças questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de mil  anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível”, diz ela².

Charles José da Silva, Psicólogo Clínico, Psicanalista, Pós graduando em Teoria e Clínica Psicanalítica, comenta em um de seus textos Medicalização do Sofrimento e a Dor Existencial Humana “[…] medicalizaram-se as crianças, por apresentarem rebeldias que, até bem pouco tempo tratávamos como ‘coisas de crianças’ e que hoje demos o status de “doença”. Estamos tornando nossas crianças e suas infâncias doentes”³.

Posso constatar o que o caro colega comenta todos os dias em minha clínica, onde atendendo crianças com demandas das mais diversas ordens, sendo de aprendizagem ou emocionais, tanto na vertente Psicopedagógica ou Psicanalítica ,defrontando-me com familiares contaminados com o olhar do outro (escola, educadores, amigos, parentes, profissionais diversos) numa busca inalcançável de perfeição de conduta dessas crianças que desejam ser ouvidas e que na grande maioria das vezes os problemas que apresentam são da ordem do emocional. É preciso investigar a causa e não apenas voltar os olhares para os sintomas, afinal de contas é essa a proposta da prática psicopedagógica e psicanalítica, compreender que o sintoma fala da subjetividade do sujeito, e calar isto pode incorrer num grande equívoco. Precisamos aprender a exercitar um novo movimento "falar com as crianças" e não apenas "falar sobre elas".

Deixamos aqui um importante questionamento e propomos aos leitores uma importante reflexão.

* Artigo: Da higiene mental à higiene química: contribuições para um comportamento entre a criança tomada como objeto pelo higienismo e como sujeito de sua verdade pela psicanálise, 1989, página 179.
¹ http://filpsicanalise.blogspot.com.br/2010/08/jacques-lacan-e-educacao.html
² http://www.psicologiasdobrasil.com.br/ritalina-a-droga-legal-que-ameaca-o futuro/#ixzz456IeD8Xo
³ https://www.portalvalencarj.com.br/medicalizacao-do-sofrimento-e-a-dorexistencial-humana


 Andréa Pinheiro Bonfante- Psicanalista e Psicopedagoga - Mestre e Doutoranda em Psicanálise

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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A importância da confiança nos relacionamentos entre pais e filhos

 


Relacionamentos são como plantas – precisam de cuidados constantes; na medida certa; no tempo certo.

Muitas vezes alegamos não ter o tempo que gostaríamos para nos dedicar mais aos filhos.  A verdade é que o dia tem 24 horas para todo mundo.  Logo, precisamos encontrar a melhor forma de administrar essas 24 horas, de modo que haja tempo suficiente para os nossos compromissos.  O trabalho profissional, naturalmente, absorve a maior parte do dia de todos.  Sendo assim, outras ocupações, também muito importantes, deverão ter sua parcela de tempo definida da melhor forma possível, até por uma escala de prioridade.

E uma dessas ocupações é o nosso relacionamento com os filhos, de extrema importância.  E é sobre esse relacionamento que precisamos refletir, principalmente por ocasião do SETEMBRO AMARELO, dedicado ao tema SUICÍDIO. 

As estatísticas demonstram um crescimento alarmante no número de suicídios por parte de crianças e adolescentes, no correr dos últimos anos.  Os motivos são vários, incluindo bullying e a influência de redes sociais.

Gostaria de nesta reflexão abordar algo que devemos considerar como INDISPENSÁVEL em qualquer relacionamento, particularmente com os filhos – a CONFIANÇA.

Por mais reduzido que seja o tempo disponível para o relacionamento, quando há CONFIANÇA esse reduzido tempo acaba se tornando o necessário para que haja: escuta plenamente atenta; compreensão; companheirismo; troca de desabafos; empatia; orientação; etc.

Precisamos criar um clima com nossos filhos que deixe bem clara a real existência de uma presença constante, mesmo que nem sempre presencial, para que haja um diálogo proveitoso, que possa tratar de QUALQUER ASSUNTO, sem distinção.

E também é muito importante que esse clima de confiança permita que, se houver ALGO EXTREMAMENTE URGENTE, haja a certeza de que esse assunto será alvo de uma CONVERSA IMEDIATA, ou, caso impossível, no PRIMEIRO MOMENTO DISPONÍVEL.  E se essa última alternativa ocorrer, o filho/a filha saberá esperar, porque EXISTE UM CLIMA DE VERDADEIRA CONFIANÇA, que é o PRIMEIRO INGREDIENTE INDISPENSÁVEL para acalmar o íntimo daquela criança, ou daquela(e) jovem.

COMO CRIAR UM CLIMA DE CONFIANÇA NO RELACIONAMENTO?

Exemplos:

- olhe nos olhos, demonstrando total atenção;

- escute atentamente, dando claros sinais de interesse;

- deixe que o interlocutor se sinta à vontade para se expressar, da maneira como se sentir melhor;

- se necessário, para não ficar dúvida, faça alguma pergunta que possa esclarecer melhor a situação vivida, sem pressionar;

- sentindo-se suficientemente apto para ajudar, oriente, esclareça o que for necessário, indique caminhos, soluções;

- e o que é, também, muito importante: se os pais notarem que a situação vivenciada pelos filhos ultrapassa os seus recursos de ajuda, que um profissional qualificado seja procurado, para que uma análise mais adequada e eficaz possa acontecer.

- e, acima de tudo, deixe o(a) interlocutor(a) com a plena certeza de que pode continuar confiando nesse relacionamento – o melhor tipo de troca de ideias, de apoio de que ele(a) dispõe.


Nossos filhos necessitam de permanente acompanhamento, de observação.  Diante de qualquer mudança de comportamento, alteração na fisionomia, enfim, qualquer sinal de que algo os incomoda, precisamos agir rapidamente, embora sem pressioná-los.

Quando, de fato, existe um VERDADEIRO CLIMA DE CONFIANÇA, quando os filhos passam a vivenciar situações de dúvida ou de perigo, os pais são imediatamente procurados.


Paulo de Aquino-Educador