Psicanalista Mestre e Doutoranda em Psicanálise

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O NOME DO PAI- FUNÇÃO PATERNA

 

O NOME DO PAI

“Novos tempos, novas configurações” (Andréa Pinheiro)





Dou início a esse texto trazendo uma frase que considero bem atual, e que costumo usar muito nas palestras, nas salas de aula e nos debates aos quais tenho participado. E a quais configurações me refiro? Às configurações familiares, principalmente quando o assunto em questão é a ausência do pai, algo que se inscreve recorrentemente nessa nova cartografia contemporânea. Lares sem pais, mães em cena.

Temos falado muito sobre as dificuldades dessa nova geração de crianças e adolescentes, em lidar com os limites, com as regras, enfim, com a lei. E quando é que essa lei chega na vida de uma pessoa? Apenas quando ela se torna adulta? Não. É desde sempre, já nos primeiros momentos de vida desse bebê que chega ao mundo e que é mergulhado num banho de linguagem. Vale dizer, que de uma forma ou de outra não conseguiríamos pular fora desse barco, porque justamente a lei se inscreve em nossa vida do início ao fim, desde o nascimento até a morte.

A figura do pai, na psicanálise, é nomeada não como algo meramente biológico, mas como função paterna, e o psicanalista francês Jacques Lacan deixa claro que a função do pai no complexo de Édipo, está muito além de sua conduta ou do papel que ele desempenha em sua família, se ausentando com frequência ou ficando em casa enquanto a mãe sai para trabalhar, o essencial é que o sujeito entenda a dimensão do Nome-do-Pai, que é um termo bíblico que Lacan se utiliza para falar de duas funções importantes na constituição do sujeito: dar ao filho seu Nome, dando a ele um lugar, e ao mesmo tempo dizer um Não ao desejo da mãe pela criança e da criança pela mãe, o que provavelmente o salvará da alienação , circunscrita pelo gozo da mãe em ser toda e de ter o filho todo para ela. Dessa forma, entendemos que o pai é aquele que porta a lei e não um mero educador que encarna a lei, mas aquele que se identifica com ela, tornando-se arbitrário, introduzindo para a criança a norma fálica.

Então, se nas novas configurações familiares, o pai quase sempre não está presente e tampouco faz função, como "desalienar" essa criança do gozo da mãe, que não consegue ao mesmo tempo "maternar" e castrar?  Como se dariam esses novos arranjos familiares? Quem circunscreve a lei, o não, o interdito?  A estrutura familiar de que fala a psicanálise é a estrutura da mítica edípica, aquela que organiza a relação entre a mãe, a criança e a função paterna.

Trago a vocês para contextualizar nossa proposta ,a emblemática e tão popular música dos finais dos anos 70 do cantor Fábio Júnior, “Pai”, que continua sendo poesia cantada para muitos que veem nela, essa relação paradoxal e controversa do pai herói e bandido, do pai que ao mesmo tempo é lei, mas que também é arbitrário, o pai que “ensina o jogo da vida”, mas que muitas das vezes está com a sua voz presa pra falar de amor com seu filho, um filho que cresceu e que se lembra de estar morrendo de medo nos braços desse pai que um dia fez segredo, mas que fez parte do caminho do filho, a seu modo, mas que entretanto o filho acredita que ainda possam ser mais do que dois grandes amigos.

Prof. Mestre Andréa Pinheiro Bonfante- Mestre e Doutoranda em Psicanálise.


quarta-feira, 24 de julho de 2024

SÍNDROME DO PENSAMENTO ACELERADO OU O MAL-ESTAR NOS NOVOS CONTEXTOS CIVILIZATÓRIOS?

 





Em junho deste ano (2024), recebi na minha semana de férias, um convite da emissora Band-Interior, o convite para participar do programa “Taí para todos” com o apresentador Taí, que busca levar ao seu programa sempre temas atravessados por questões diversas e que são do interesse do senso comum.

Achei interessante, um programa popular se interessar de levar à sua audiência um tema em que a saúde emocional estivesse na pauta. Além de mim, uma psicóloga também recebeu o convite para dividir comigo a proposta de esclarecer ao público sobre a SPA- Síndrome do Pensamento Acelerado. Mas como dizer sobre isso, sem me restringir a um discurso da doença, já que essa nomenclatura foi cunhada pela psiquiatria? Não era meu desejo cair nas armadilhas dos rótulos ou de um CID- Código Internacional das Doenças, que na maioria das vezes acaba por rotular o sujeito sem considerar sua subjetividade.

Sendo assim, opto em levar ao programa uma inquietação, uma reflexão, ou seja, a de que a SPA- seja um sintoma dos novos contextos civilizatórios, trazendo notícias de uma sociedade exaurida pelos excessos não apenas pelo uso das redes sociais e equipamentos eletrônicos, mas também pela imposição de um discurso marcado pelo excesso de positividade, que diz ao sujeito, todo o tempo, que além de se auto gerenciar, ele deva fazer isso com plena assertividade, caso contrário, ele será um fracassado e será engolido pela proposta capitalista, onde o que prevalece é o TER para então SER, o já conhecido discurso da MERITOCRACIA.

O filósofo contemporâneo Byung-Chul Han em seu livro “A Sociedade do cansaço”, coloca isto de forma muito clara, ao afirmar que estamos exauridos pelos excessos. Falta a alteridade, a diferença. Enquanto  nos primórdios da vida moderna lidávamos com parâmetros, normas pré-estabelecidas, conhecidas e teoricamente testadas, quando alguns outros como nossos pais, professores e/ou aqueles que nos cuidavam nos direcionavam acerca daquilo em que teoricamente poderíamos confiar; hoje, na contramão de tudo isso, temos de nos haver com um auto centramento que se conjuga de maneira bastante paradoxal com o que é exterior e, dessa forma, a subjetividade se reveste de algo que é extremamente estético e midiático não apenas elevando, mas, também, valorizando a cultura do narcisismo e do espetáculo. Há tempos, temos falado de uma sociedade adoecida e cansada, atravessada pelo consumismo e pelo excesso de positividade, permeados pela visibilidade e desempenho.

Além disso, também nos deparamos com a notícia que chega em tempo real, não importando o quão distante os fatos aconteçam, e dessa forma, todas essas circunstâncias  acabam por nos fazer transbordar de excessos numa velocidade que em muito excede os velocímetros de nossa máquina humana. Essa ditadura da velocidade, nomeada de tacocracia[1], onde a ligeireza dos eventos conta como  critério de qualidade para as coisas em geral, nos coloca escravos do relógio, não para vermos que horas são, mas sim para nos certificarmos quanto tempo falta, o quanto ainda nos resta, uma equação na qual estamos sempre diante da falta. Desta forma, para não perdermos tempo, nos vemos diante da quase obrigação de sermos produtivos e acelerados, com nossos velocímetros em alta velocidade.


Birman (2016), em Mal-estar na atualidade, deixa claro que está implícita nessa questão a problemática da subjetividade, pois não há como abordarmos o mal-estar sem trazermos à cena o sujeito, pois o mal-estar reside onde reside o sujeito e sua subjetividade. O mal-estar é tema recorrente quando o assunto é o sofrimento dos sujeitos em suas especificidades.

A dificuldade dessa tarefa e o mal-estar recorrente deve-se ao fato de que vivemos num mundo perturbado e conturbado, onde a precariedade de nossas ferramentas interpretativas não dá conta de acompanhar a velocidade e agudeza dos acontecimentos que nos imergem numa condição de autogerenciamento constante que nos adoece (BIRMAN, 2016). Ao nos vermos imersos nessa configuração, urge-se a necessidade de refletirmos sobre a angústia que resulta dessas novas formas de subjetivação, circunscritas no mal-estar na atualidade. 

Falar do mal-estar na atualidade é reportar-se à obra freudiana “O mal-estar na cultura”, só que numa nova configuração, numa nova dinâmica, que pensa o estatuto do sujeito no mundo moderno, um sujeito que se encontra desencantado do mundo, desamparado em si mesmo, esvaziado de si, que não sabe o que e nem como fazer com isso que a modernidade lhe sinaliza, lhe aponta e lhe exige. Freud diz que não há como pularmos para fora deste mundo. Isso equivale a dizer que há aí um vínculo indissolúvel, isto é, “de ser uno com o mundo externo como um todo” (FREUD, 1927/1996, p. 74). 

É curioso pensar que Birman (2016) venha fazer fronteira com as colocações de Freud, dialogando sobre questões que já eram consideradas pelo  pai da psicanálise desde o final dos anos 1920. E o que estava em questão para Freud que pode ser agora observado por um autor do século XXI? 

Desde aquela época, Freud já se esforçava para circunscrever o sujeito na modernidade e, passado um século, essa continua sendo a questão, e claro, com agravantes consideráveis, visto a complexidade do desamparo que, desde sempre, foi estrutural e que hoje se acentua por essa nova cartografia social. Uma cartografia que fala de uma fragmentação do sujeito, de sua subjetivação e, também, da matéria-prima da qual essa subjetivação é formada, onde o “eu” se encontra numa posição privilegiada, assumindo formas inéditas, que não sabemos ainda como lidar, tampouco os resultados que essas experiências irão nos sinalizar.

Há tempos, temos falado de uma sociedade adoecida e cansada, atravessada pelo consumismo e pelo excesso de positividade, permeados pela visibilidade e desempenho. Conforme mencionamos anteriormente, Freud (1930[1929]/1996) já sinalizava isso ao dizer que nem todos os homens contam com a admiração de outros, pois a grandeza deles e seus feitos repousam sobre determinados atributos e realizações não reconhecidos pelas grandes massas – e essa afirmação de Freud dialoga com as provocações e reflexões do coreano Byung- Chul Han. A partir dessa colocação de Freud, podemos pensar na necessidade de reconhecimento do sujeito pelo outro desde sempre e que se instala de forma muito clara nos tempos atuais, onde precisamos mostrar ao mundo o quanto somos bons e perfeitos, revestidos numa aura de positividade constante. 

E como poderíamos então ser imunes ao que é positivo? Como afastar a negatividade do que “teoricamente” não é negativo? Contraditório, entretanto, muito importante que levantemos o debate para que não sigamos adoentados, presos em correntes que nos empurram para o discurso da meritocracia, do “você vai dar conta”, “tem de dar certo”, “você precisa ser proativo” e tantos outros discursos que falam sobre os destinos da pulsão na contemporaneidade, que, numa condição de desamparo estrutural, própria do ser humano, nos leva a uma situação de desamparo social.

Nessa situação, o que é do outro ou está ao lado é sempre melhor, e como diz o ditado popular” a grama do vizinho é sempre mais verde”, nos remetendo a uma sensação de impossibilidade, a uma impotência que é causa de angústia. Assim, os adoecimentos psíquicos seguem adentrando o século XXI, quando encontramos, cada vez mais pessoas sequestradas ao exagero da positividade, ao espetáculo e à cultura do narcisismo, como já dito anteriormente.

O homem contemporâneo enveredou-se de tal forma nesse labirinto que, em alguns casos, mal se dá conta de sua cegueira psíquica, entrando em um contexto em que o que prevalece é a valorização do “eu”, o discurso do ideal do “eu”. Nunca se soube tanto da vida do outro como hoje. Há, nesses casos, uma necessidade latente em se comentar a própria vida, o que se come, o que se faz a cada hora do dia etc., de modo que dos temas mais complexos, como morte e doença, aos mais corriqueiros, como o que se comeu hoje, são lançados nas redes sociais indiscriminadamente, e já que a maioria faz, eu deveria também fazer? Diante da dúvida e da insegurança de não sermos vistos e por conseguinte não sermos “reconhecidos”, acabamos sucumbindo ao discurso.

 

Essa exaltação desmedida da individualidade no mundo espetacular, como se a vida fosse um grande palco, com holofotes sempre voltados para esse “eu” extremamente narcísico, pronto a atuar a todo tempo como se não houvesse sequer um intervalo entre um ato e outro, aponta para o que Birman (2016) nomeia “Ethos da violência”, que é justamente isso que impossibilita a capacidade de admirar o outro em sua diferença, já que a descentralização em si pode ser tão difícil aos sujeitos dos tempos modernos. 

 

Diante do que nos aponta o mundo contemporâneo, nos questionamos sobre o que podemos e devemos fazer. Talvez possamos apostar que nos darmos conta de nossa precariedade e castração seja um bom começo para considerarmos, ao menos em parte, que somos incompletos, que a falta é inerente ao sujeito e que essa incompletude é o que nos faz humanos.

 A positivação do mundo aponta para novas formas de violência, numa sociedade aparentemente pacificada, porém permissiva, cega a uma violência viral, uma violência subjetiva, velada, que cala, adoece e acaba por disciplinar os supostos indisciplinados que mal se dão conta da escravidão a qual se permitem estando presos a esses discursos. Como num ciclo, o mais do mesmo se repete.

E talvez esse seja o maior desafio com o qual tenhamos de lidar, apontando para a seguinte reflexão, de que a “Síndrome do pensamento acelerado”, seja de fato um sintoma dos novos contextos civilizatórios, um mal estar da atualidade.


Por Andréa Pinheiro Bonfante- Psicanalista Mestre e Doutoranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade




[1] É um termo que significa "ditadura da velocidade", que denota a noção de que as melhores coisas são classificadas como as mais rápidas.