A ATEMPORALIDADE
NO PROCESSO DE ANÁLISE
Trago
a vocês um fragmento de minha tese de Doutorado cujo tema é: “O Tempo da
Adolescência: A Transitoriedade Como um dos Nomes da Castração. Nessa pesquisa,
destacam-se algumas palavras chaves, dentre elas, adolescência, castração,
tempo, transitoriedade, arte. Entretanto, nós bem sabemos que uma pesquisa,
principalmente uma tese que leva 4(quatro) anos para ser desenvolvida, não se
restringe apenas ao título, mas principalmente à inquietação ao qual você
autor, foi levado a dedicar seu tempo e desejo pautado na hipótese dessa
pesquisa, e no meu caso, a hipótese é de fazer pensar que tempo é esse.
Desta
forma, durante o processo de escrita da pesquisa, esbarro em outros
significantes, tais como juventude, beleza e principalmente “atemporalidade”, e
o que principalmente nos interessa aqui é falarmos da atemporalidade num
processo de análise, e não apenas ao que se restringe ao tempo da análise 30(trinta),
40(quarenta)ou 50(cinquenta) minutos, dentro de um consultório, pela janela
virtual no atendimento on-line, na cabeceira de uma cama hospitalar ou de um
paciente adoentado que você vá atender em domicílio. Estamos também e
principalmente nos referindo às narrativas do analisando que não cumprem uma
lógica linear, que transitam dentre passado, presente e futuro e não
necessariamente nessa ordem, pois esse tempo Chronos, que é o tempo dos
minutos, das horas, do calendário, ele se mistura com o tempo kairós, que é da
ordem da não ordem , do subjetivo, das hiâncias, dos intervalos e da história
de cada sujeito.
A
prova disto foi o fragmento de um caso clínico que levei para minha tese e que
pautei toda a minha pesquisa para falar deste tempo. E para que eu possa
contextualizar e que vocês possam entender minha proposta de falar da
atemporalidade num processo de análise, deixe-me fazer um brevíssimo resumo
deste caso clínico:
Priscila,
nome fictício da analisanda, chega à clínica por volta de seus 45 (quarenta e
cinco) anos. Mãe de duas filhas de casamentos distintos, envolvida em seu
terceiro relacionamento quando chega à análise, traz como queixa principal a
sensação de ter tido sua ‘ADOLESCÊNCIA ROUBADA”. Praticamente tudo gira em
torno dessa sua fala. Priscila se queixa de não ter podido viver sua
adolescência na plenitude que ela desejava, pois segundo ela, havia sido
primeiro roubada pelos pais severos e uma criação extremamente conservadora e
depois como consequência de suas escolhas, por dois casamentos abusivos, que a
tomaram seus anos dourados.
A
analisanda carrega nas suas narrativas lembranças de um saudosismo intenso da
infância feliz que teve e na contramão dessas doces memórias e dos momentos
conturbados de sua adolescência, etapas não vividas, um sequestro de sua
subjetividade, uma pergunta constante “Quem me roubou de mim?” rondava a cena
analítica em cada sessão. Adolescência, infância, vida adulta se misturavam
resultando em conflitos, conflitos estes que a levaram a procurar pela análise.
Por
conta dessa sensação de perda, de ter tido a adolescência roubada, Priscila
vivia às voltas em tentar recuperar o “Tempo” perdido. Mas seria possível
recuperar o tempo? Essa tentativa a mantinha presa em suas próprias memórias,
mantendo-as presa na cena de sua infância e principalmente de sua adolescência.
Durante a escrita de minha tese, uma frase do psicanalista Contardo Calligaris
não me saia da cabeça: “Somos restos e rastros de nossa infância”.
O que
o analisando leva enquanto narrativa e queixa daquilo que desfunciona em sua
vida, é pautado numa atemporalidade, num ir e vir, num de trás para frente.
Quase como numa máquina do tempo, fazemos essa viagem entre passado, presente e
futuro, misturando as estações onde primavera, verão, outono e inverno se fazem
presentes em um único dia, em uma única sessão.
Não há
cronologia linear no discurso do analisando, pois a cronologia é temporal, enquanto
o tempo da análise é atemporal, o que há é justamente essa atemporalidade que é
preciso ter ouvidos para ouvir aquilo que vai nas entrelinhas, no não dito, no
silêncio e na não linearidade. Se o analista busca sequência lógica de eventos
para dar escuta ao seu analisando, provavelmente estará fadado a uma não escuta
e provavelmente a impossibilidade de uma análise.
Por
outro lado, o paciente que se prende a essa necessidade cronológica do tempo,
se não atravessado por uma pontuação do analista na direção de fazê-lo perceber
que a narrativa pode ser livre, que seu
discurso não precisa estar alinhado com a lógica que se pressupõe a correta,
ele , o analisando, muito provavelmente deixará de dizer de si. E o analisando
tenta trazer essa metrificação porque justamente a sociedade e os laços sociais
aos quais estamos inseridos, nos cobram essa suposta lógica do tempo e da
métrica que nos leva a uma não lógica, a um non-sense, um contrassenso, um
sem sentido, onde o sujeito continua repetindo na cena analítica um sintoma
o qual o leva ao sofrimento psíquico daquilo ao qual é constantemente cobrado.
O
tempo da análise é um outro tempo. O tempo da análise é um Inconsciente em
cena., onde o analisando atua e performa na sua não lógica e sua não
linearidade para tentar dizer de suas angústias, de seus incômodos. Jacques
Lacan traz uma máxima ao dizer que o artista já sabe aquilo que o psicanalista
supõe. Por isso, seguindo a mesma lógica de Freud, me lambuzo e me permito a
essa audaciosa proposta de me lambuzar de arte. Na música de Caetano Veloso
“Oração ao tempo”, diga-se de passagem, uma poesia cantada, o autor coloca o
tempo como o compositor de destinos e como um dos bens imateriais mais valiosos
do mundo, justamente por ser irrecuperável e inelástico. Ele considera que sua
perda pode trazer máculas expressivas e irreversíveis, mas não necessariamente
depreciativas, devido à possibilidade de reinvenção. Por essa razão, sendo o
“compositor do destino”, o autor faz uma proposta: que o tempo possa ser
inventivo e nos traga brilho e movimento, estabelecendo conosco um outro tipo
de vínculo, embelezado pelas surpresas do cotidiano. E não é justamente isso
que a psicanálise propõe? Ressignificar.
A
reflexão trazida aqui, inspirada na música de Caetano Veloso, leva-nos a
considerar que coisas que envelhecem, em vez de perderem valor, agregam ainda
mais significado, como o vinho, a arte, os fósseis e as civilizações. Essa
ideia encontra suporte nas considerações de Freud em seu ensaio “Sobre a
Transitoriedade”, que afirma que a transitoriedade do que é belo não implica
uma perda de valor, mas sim um aumento. O valor, segundo Freud (1916[1915]),
está justamente na escassez do tempo, pois aquilo que é limitado eleva o valor
de seu desfrute.
Entretanto,
percebe-se que a consciência da finitude do tempo e do belo pode comprometer o
discernimento de algumas pessoas, justamente por antecipar a ideia de luto pela
morte de toda beleza transitória. Isso nos faz recuar instintivamente, quase
como um mecanismo de defesa — uma negação diante de algo que nos é penoso. O
luto daquilo que se “perdeu”. O luto da infância, da adolescência, da beleza e
da juventude pode nos colocar diante de uma sensação de perda irreparável.
Somos tomados pelo desalento da fluidez
daquilo que é belo e novo.
Fazendo
uma correlação com o caso clínico resumidamente apresentado aqui, podemos
pensar que Priscila estivesse enlutada, tomada pela sensação de perda de algo
que, para ela, sempre foi de grande valia: sua adolescência. A transitoriedade
da vida, atrelada ao tempo de “dentes afiados”, parece ter devorado sua
existência em vários aspectos — a infância que ficou para trás, marcada pela
mudança da casa em que viveu desde que nasceu; a adolescência, que ela julga
ter sido roubada; o tempo, que considera perdido; e a juventude, que se foi.
O
psicanalista em formação, muito provavelmente se encontrará com muitas
“Priscilas” em seu consultório, se queixando do tempo não vivido, da velocidade
dele e até mesmo assistindo a viagem no tempo de cada história contada, ou
então como analisando, às voltas com sua própria análise, se verá como Priscila
se queixando disto tudo, como se uma retrospectiva de sua vida se desenhasse diante
de si durante toda a narrativa, quando ao dirigir sua fala ao analista, você
analisando, acaba tendo a oportunidade de se ouvir.
Mas se
há algo que a psicanálise verdadeiramente propõe é que o sujeito possa
ressignificar sua história, e encerrando a escrita que me propus trazer nesse
fragmento de tese, deixo como reflexão um pensamento que aprecio muito e trago
aqui uma citação do livro de Mário Sérgio Cortella, “Provocações Filosóficas”. Cortella não é um psicanalista , mas um educador
e pensador contemporâneo com as quais muitas de suas propostas reflexivas eu me
identifico bastante. Cortella diz que: “Não nascemos prontos e vamos nos
gastando, nascemos não prontos e vamos nos fazendo”. Não seria essa uma boa
reflexão para pensarmos a atemporalidade num processo de análise?
Eu
encerro meu convite à possíveis reflexões do leitor com essa fala de Cortella e os convido a tantas outras que essas linhas possam suscitar, lembrando
que o psicanalista é sobre autorizar-se, não sobre nomear-se, e que seu próprio
percurso de formação traz notícias de uma atemporalidade. E quanto ao tempo de
análise de um paciente também é sobre uma atemporalidade, que se desenha a cada
encontro, a cada sessão.
Deixo
aqui essa inquietação com vocês, pois elas são sempre bem-vindas e por si só já
falam de uma atemporalidade, pois não há como viver sem se inquietar, desde o
nascimento até a morte, atravessados pelas transitoriedades da vida, que a cada
estação se desenham a seu modo, tal como propõe Freud em seu ensaio “Sobre a
Transitoriedade”
Dra. Andréa Pinheiro Bonfante (Mestre e Doutora em Psicanálise)