Psicanalista Mestre e Doutoranda em Psicanálise

terça-feira, 22 de julho de 2025

SOLIDÃO OU SOLITUDE? Do naSER ao envelheSER

 


SOLIDÃO OU SOLITUDE? Do naSER ao envelheSER 


Inicio essa proposta reflexiva trazendo a vocês a letra da música do cantor e compositor Alceu Valença- "Solidão", onde ele fala da ferocidade da solidão que nos devora, que dialoga com o tempo,  descompassa o ritmo de nosso coração e que inerente a nossa localização geográfica, ela nos acompanhará:

SOLIDÃO - ALCEU VALENÇA

 

A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
Solidão

A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua

A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração

A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua


Isso dito, divido aqui com vocês, uma escrita, que faz parte de um projeto de antologias que fui convidada a participar. Nele, 20 autores da área "psi", psicanalistas, psicólogos e áreas afins, se dispuseram a escrever sobre o tema. Na parte que me coube, eu a compartilho aqui com meus leitores.

Vamos lá?

Solidão ou Solitude?

-Do nascer ao envelhecer-

 

 [...] a solidão é uma ilusão, porque em última instância a gente nunca está sozinho, mas está com a gente mesmo[...]

(Ana Suy)

 

       Quando recebi o convite para participar deste projeto de antologias, me senti muito desejosa de me colocar aqui como uma colega de leitura, de me aproximar de você leitor e tentar lhe seduzir num bate-papo com bastante intimidade, algo pouco provável quando se escreve uma dissertação de mestrado ou se defende uma tese de doutorado frente a uma banca, já que a linguagem formal é exigida, como uma condição inegociável, pois a nossa proposta nestas páginas é que consigamos estabelecer um diálogo informal e não acadêmico.


    Aqui com vocês a conversa pode ser outra. Aqui, me permitirei falar de forma clara e descontraída, pois sobre a vida cotidiana, é disso que se trata, é sobre vivências e experiências. Aqui, a teoria conta, é claro, pois caso contrário eu não teria sido convidada a dividir com vocês meus conhecimentos, mas o que mais importa de fato é promover um diálogo entre conhecimento e vivência para que haja verdade no que pretendo trazer aqui aos leitores, que acredito estejam curiosos e ansiosos para entender, ou tentar entender afinal de contas, o que é solidão e solitude. Seria a mesma coisa sob perspectivas diferentes? Por que temos falado tanto sobre solidão nos tempos contemporâneos? O que é a solidão para cada um de nós? Será mesmo que a solidão necessariamente tem de estar relacionada a um sentimento de desamparo? Seria a solitude uma reconfiguração da solidão? Sinceramente eu não trago respostas, pois a vida definitivamente não é um gabarito de prova de múltipla escolha, onde dentre as opções de resposta, apenas uma esteja correta. O que eu proponho aqui são reflexões. Se você caro leitor, topa esse desafio, vamos juntos embarcar nessa viagem.






        Tenho lido muito sobre a solidão e solitude nos últimos tempos, talvez por conta da idade. Uma mulher aos seus 59 anos, menopausada, acaba por esbarrar ou porque não dizer, “trombar de frente” com a questão da tão dita solidão, pois o tempo, a transitoriedade acabam por nos colocar diante de uma solidão muito subjetiva. Mas, preciso deixar bem claro, que falo aqui sobre a minha experiência e não tenho a menor pretensão de dizer que toda mulher aos 59 anos e menopausada sinta da mesma forma o que eu trago aqui.         

        Confesso, que mesmo tendo ouvido de muitos escritores que essa coisa de solitude não passa de um jargão ou um modismo cafona, para mim, enquanto escritora e pesquisadora, a palavra solitude faz muito sentido.  Penso que  solitude seja uma oportunidade de ressignificar a sensação de desemparo que a palavra solidão possa nos trazer. Talvez possamos considerar que seja um isolar-se voluntariamente, um voltar-se para si, uma constante aprendizagem em fazer de sua própria presença uma excelente companhia. Dias atrás esbarrei num post do Instagram de autor desconhecido que dizia exatamente isso  que escrevo abaixo sobre a solitude e decidi compartilhar aqui com vocês:


"Solitude é quando você aprende a amar sua companhia. É quando você entende que não há nada de errado em estar sozinho. É quando você se completa, pois o que importa, antes de estar bem com os outros, é estar bem consigo mesmo".







         Mas vamos abrir parênteses aqui sobre esse pequeno texto, principalmente no que se refere ao se completar. É preciso deixar bem claro que não há completude de fato, o que há é uma sensação temporária e ilusória de tamponamento da falta. O sujeito vive às voltas em preencher seus buraquinhos simbólicos para evitar o desprazer, num movimento constante e cíclico, pois logo depois da ilusão do preenchimento da falta, ele cai novamente no vazio. Isso é sobre sermos humanos, e que bom que seja assim, pois essa busca nos movimenta, nos tira da inércia, nos desloca do perigoso lugar da satisfação, que pode nos paralisar.





     O autor Mário Sérgio Cortella, educador e filósofo contemporâneo traz em seu livro “Provocações Filosóficas” uma máxima de Guimarães Rosa ao dizer que o animal satisfeito dorme, ou seja, que a suposta satisfação possa nos colocar num lugar de adormecimento diante da vida, e diferente dos animais irracionais, para nós humanos, esse adormecimento possa ser uma sentença de morte. Desta forma, a inquietação é bem-vinda. Se inquieta quem tem desejo.


     Para além desta consideração, o texto de autor desconhecido conversa com o recorte do livro da autora Ana Suy que trago no início de minha escrita, quando ela diz que a solidão não passa de uma ilusão, pois em última instância, estamos sempre conosco. Talvez seja essa uma das grandes questões. Será que nos damos conta de que sempre estaremos conosco? Essa, a meu ver é a proposta de pensarmos solitude como uma estratégia de reconhecimento de nossa própria companhia.


       Vale dizer que a solidão é uma experiência inerente à espécie humana. O sentimento de solidão nos remete a um estado de desamparo infantil, uma sensação que nos faz voltar à cena primária onde o bebê precisa ser cuidado, amparado e investido para sobreviver. E de certa maneira, seguimos repetindo essa busca durante toda a nossa vida, sempre tentando retornar ao seio da mãe em busca do prazer do acolhimento e da sensação de cuidado e amparo. Freud, o pai da psicanálise, descreveu a solidão como um dos quatro tipos de angústia básica que todos nós experimentamos, juntamente com a angústia da morte e da perda de amor. Aqui as palavras morte e perda podem nos dar a dimensão do que a solidão possa significar para cada sujeito e o quão impactante e desafiador seja para cada um de nós manejá-la.






       Quando nascemos, o parto por si só, já nos coloca neste lugar de ruptura com o ventre materno. Nascer é um evento solitário, por mais que estejamos cercados por uma equipe de profissionais num centro cirúrgico, ou até mesmo em outras circunstâncias mais intimistas como um parto natural em casa. O bebê, no momento em que é dado à luz, no instante em que chega ao mundo, ele está só. Não à toa, costuma-se muitas vezes usar a expressão “um parto” para algo difícil e complexo. Do momento em que se nasce até a velhice e porque não dizer até a morte, seguimos às voltas com nossa solidão. “Ser” do nascer ao envelhecer. Na tentativa de conjugar o verbo SER, seguimos tentando ao longo da nossa vida transformar nossa solidão em solitude.


     Temos a ilusão de conseguir diminuir a angústia da solidão nos aproximando dos excessos e um desses excessos é pensar que em meio a uma multidão não nos sentiremos sós. Ledo engano. Me lembro de uma experiência pessoal que vivi a muitos anos, onde num imenso pavilhão de eventos, cercada de muitos amigos e de uma multidão de pessoas que estavam ali para apreciar o show de um cantor famoso, eu atravessada pelas minhas dores, pois estava passando por um momento difícil em minha vida, desabo a chorar, e nesse instante, cercada de pessoas eu me senti imensamente solitária. Nem mesmo as milhares de pessoas que estavam ali, deram conta de amenizar a minha sensação de desamparo, de recobrir a minha falta, porque a solidão que eu sentia estava em mim, eu me sentia sozinha em mim, me sentia vazia, vivendo o luto de minhas perdas. Lembra quando em alguns parágrafos atrás eu trago as considerações de Freud, o pai da psicanálise, ao dizer que a solidão se equipara à angústia de morte e a perda do amor? Então, eu estava às voltas com isto, tentando elaborar a perda de um grande amor, e me sentia completamente só, mesmo cercada por uma multidão.


         Costumamos tentar suprir nossos vazios, nossa solidão da vida com excessos. Muito consumismo, muita comida, muitos vícios, muita gente, muito tudo. Excessos que transbordam e que no final das contas conseguem suprir absolutamente nada, apenas dão a ilusão de preenchimento, que por ser ilusório se esvai, não se sustenta porque não é genuíno, não é verdadeiro. Talvez seja essa a “pegada” de pensarmos solitude como uma possibilidade de criarmos condições e estratégias de lidarmos com nossa solidão de uma forma criativa e elaborada, dialogando com nossos desejos.


        Simpatizo muito com a ideia de que a solitude seja um autocuidado, uma forma de nos priorizarmos e principalmente ficarmos atentos à manutenção de nossa saúde emocional. Em tempos de excessos, priorizar-se é condição fundamental para nos mantermos minimamente saudáveis, já que o todo é pura ilusão. É muito mais sobre pensarmos qualidade do que quantidade.


         O que a transitoriedade da vida, as metamorfoses pelas quais atravessamos durante a vida nos provoca? Caminhar na direção do envelhecer pode nos trazer muitos desconfortos, pois é uma questão da qual não podemos fugir, mas sim ressignificar, fazer diferente tanto em conceito como em atitudes. Solitude pode ser exatamente isto, um conceito complexo e profundamente pessoal. Para alguns, representa um refúgio tranquilo, uma chance de refletir e recarregar as energias, encontrar-se em si para tentar dar conta das intempéries da vida. E para você? O que é solidão e o que é solitude? Vamos pensar juntos? 


Andréa Pinheiro Bonfante- Doutora e Mestre em Psicanálise- 

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